Visão, 22/08/2002
Em Agosto, as águas
da cidade correm lentamente e parecem, de súbito, lavadas da sujidade de todos
os dias. As tardes espreguiçam-se como as de um longo e infindável domingo e o
trânsito flui sem destino que se veja. Os cafés bocejam; as ruas, ainda há pouco
febris, tornaram-se inesperadamente amplas e luminosas; e nem os últimos
saldos, promoções e «rebajas» conseguem agitar a sonolência das grandes
superfícies e dos prontos-a-vestir.
Sem filas, sem
disputas de lugares de estacionamento, sem querelas futebolísticas, a cidade é
outra cidade em Agosto, amistosa, paciente, razoável. Dir-se-ia que um imenso
anjo condescendente pousou nos corações e os limpou de toda a ansiedade. É
verdade que, aqui e ali, em algum centro comercial periférico ou em alguma
auto-estrada recém-inaugurada, sobrevivem, como fiapos sujos, vestígios da
pressa do resto do ano, mas a cidade, indiferente, passa, entregue a um moroso
vagar improdutivo que, fosse ele em Janeiro ou Fevereiro, seria motivo de escândalo
e decerto levaria o Dr. Bagão Félix e o patronato a ponderarem a imposição do
trabalho forçado no desenvolto projecto de Código actualmente (quem o diria?)
em discussão pública.
O cronista está ao
computador em mangas de camisa, rodeado de Agosto por todos os lados, excepto
pelo lado da crónica. De longe, como um rumor, chegam-lhe, misturados com os
gritos das gaivotas e a vozearia das crianças brincando na rua, dispersos ecos do
Mundo: a dislexia da princesa herdeira da Suécia; o divórcio de Jardel; o
emigrante que veio de Paris a pedalar até à aldeia natal.
A crónica hesita: um
elefante do Zoo de Praga levado pelas cheias; Dresden, a mártir, afogada no
Elba; as contas da Dra. Manuela Ferreira Leite que, afinal, estavam furadas; a
bonificação de juros negada, em nome do rigor orçamental, aos jovens que pedem
um empréstimo para comprar um T1 e concedida aos clubes de futebol para a
construção de estádios milionários...
Mas pela janela
aberta da sala entra subitamente uma brisa morna que agita as cortinas e o
Mundo desvanece-se. O gato adormecido em cima do jornal sobre uma foto do Papa
a dizer missa em Cracóvia, um raio de Sol na estante iluminando a lombada azul
de Todos os poemas, de Ruy Belo, tornam-se acontecimentos tão próximos e
tão reais, e tão imperativos, que a crónica, para desgraça do cronista, perde o
fio ao Mundo.
O cronista
levanta-se e liga a TV. É domingo. O Sporting disputa a Supertaça com o Leixões;
Bush, que não tem armas de destruição maciça nem ameaça outros povos, diz que é
imoral o Iraque ter armas de destruição maciça e ameaçar outros povos; segundo
a US Weekly, Angelina Jolie acabou o seu «casamento profundo» com Billy
Bob Thornton e já não o vê desde o dia 3 de Julho. Alheio à Supertaça, a Bush e
a Angelina Jolie, o gato dorme e, quem sabe?, sonha.
Pobre crónica,
desamparadamente só entre tanto Agosto e tanto Mundo! Que pode ela fazer senão
deixar-se ociosamente ir? Talvez, convenhamos, lhe fosse exigível mais, talvez
devesse sair de casa e de si, e ser forte, e ser firme, e ser memorável;
denunciar, interrogar, sorrir, enternecer-se; convocar verbos e adjectivos,
sentidos e sentimentos; viver e morrer. Mas em Agosto, senhores?
M. A. Pina
Sem comentários:
Enviar um comentário