quinta-feira, 22 de agosto de 2013

AGOSTO

Visão, 22/08/2002

Em Agosto, as águas da cidade correm lentamente e parecem, de súbito, lavadas da sujidade de todos os dias. As tardes espreguiçam-se como as de um longo e infindável domingo e o trânsito flui sem destino que se veja. Os cafés bocejam; as ruas, ainda há pouco febris, tornaram-se inesperadamente amplas e luminosas; e nem os últimos saldos, promoções e «rebajas» conseguem agitar a sonolência das grandes superfícies e dos prontos-a-vestir.
Sem filas, sem disputas de lugares de estacionamento, sem querelas futebolísticas, a cidade é outra cidade em Agosto, amistosa, paciente, razoável. Dir-se-ia que um imenso anjo condescendente pousou nos corações e os limpou de toda a ansiedade. É verdade que, aqui e ali, em algum centro comercial periférico ou em alguma auto-estrada recém-inaugurada, sobrevivem, como fiapos sujos, vestígios da pressa do resto do ano, mas a cidade, indiferente, passa, entregue a um moroso vagar improdutivo que, fosse ele em Janeiro ou Fevereiro, seria motivo de escândalo e decerto levaria o Dr. Bagão Félix e o patronato a ponderarem a imposição do trabalho forçado no desenvolto projecto de Código actualmente (quem o diria?) em discussão pública.
O cronista está ao computador em mangas de camisa, rodeado de Agosto por todos os lados, excepto pelo lado da crónica. De longe, como um rumor, chegam-lhe, misturados com os gritos das gaivotas e a vozearia das crianças brincando na rua, dispersos ecos do Mundo: a dislexia da princesa herdeira da Suécia; o divórcio de Jardel; o emigrante que veio de Paris a pedalar até à aldeia natal.
A crónica hesita: um elefante do Zoo de Praga levado pelas cheias; Dresden, a mártir, afogada no Elba; as contas da Dra. Manuela Ferreira Leite que, afinal, estavam furadas; a bonificação de juros negada, em nome do rigor orçamental, aos jovens que pedem um empréstimo para comprar um T1 e concedida aos clubes de futebol para a construção de estádios milionários...
Mas pela janela aberta da sala entra subitamente uma brisa morna que agita as cortinas e o Mundo desvanece-se. O gato adormecido em cima do jornal sobre uma foto do Papa a dizer missa em Cracóvia, um raio de Sol na estante iluminando a lombada azul de Todos os poemas, de Ruy Belo, tornam-se acontecimentos tão próximos e tão reais, e tão imperativos, que a crónica, para desgraça do cronista, perde o fio ao Mundo.
O cronista levanta-se e liga a TV. É domingo. O Sporting disputa a Supertaça com o Leixões; Bush, que não tem armas de destruição maciça nem ameaça outros povos, diz que é imoral o Iraque ter armas de destruição maciça e ameaçar outros povos; segundo a US Weekly, Angelina Jolie acabou o seu «casamento profundo» com Billy Bob Thornton e já não o vê desde o dia 3 de Julho. Alheio à Supertaça, a Bush e a Angelina Jolie, o gato dorme e, quem sabe?, sonha.

Pobre crónica, desamparadamente só entre tanto Agosto e tanto Mundo! Que pode ela fazer senão deixar-se ociosamente ir? Talvez, convenhamos, lhe fosse exigível mais, talvez devesse sair de casa e de si, e ser forte, e ser firme, e ser memorável; denunciar, interrogar, sorrir, enternecer-se; convocar verbos e adjectivos, sentidos e sentimentos; viver e morrer. Mas em Agosto, senhores?
M. A. Pina

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