quarta-feira, 2 de abril de 2014

O VALOR DUM OVO

Quando o escudo foi desbancado pelo euro, circularam por aí calculadoras de bolso de vários tamanhos e feitios as quais, a um leve toque de dedo, faziam a correspondência entre as duas moedas. Desconfio que uma delas me foi parar à cabeça. E agora, sempre que me falam em euros, eu penso em escudos e recuo: «Tanto dinheiro?!»
Eu já sou do tempo do meio tostão e posso garantir que ninguém o desprezava. Quem é que hoje faz caso dum cêntimo? Todos o reputam coisa minúscula, insignificante, desprezível.
Pois a mim, se me pedem um cêntimo, a tal maquineta que me foi parar à cabeça, dispara: «Atenção! Dois escudos» E eu repito: «Dois escudos? Mas isso são para aí cinco ovos?!»
Esta mania de calcular o preço das coisas em ovos, ficou-me do tempo em que minha mãe me entregava um e dizia:
— Vai ali à loja e traz uma quarta de açúcar.
E eu corria à venda, entregava o ovo e trazia a quarta de açúcar. E até de uma vez parti o ovo à ida e de outra derramei o açúcar à vinda. E de ambas apanhei daquelas de que os cães não gostam. Falo nisto para dizer que, na minha infância, os ovos eram a moeda de troca mais corrente na minha aldeia. Um ovo valia uma entrada no teatro.
Nesse tempo, não havia feira ou festa que não metesse marionetas. E como nem todos os dias há feira ou festa e todos os dias um fabiano precisa de comer, esses audaciosos artistas ambulantes faziam «tournées» pelas aldeias.
Um dia apareceu um em Peireses e anunciou, rua abaixo, rua acima, ao som dum pandeiro, que logo, depois de ceia, havia teatro em casa da senhora Adelina Vitala. Entrada, um ovo por adulto. Menores de sete anos, desde que ao colo das respectivas mães, não pagavam nada.
Eu, na altura já matolote, surripiei um ovo em casa. Mas não cheguei a entregá-lo ao empresário. Pelo caminho encontrei a Perrona que me perguntou:
— Trazes o ovo?
— Não sei. Meta aqui o dedo a ver...
— Já sabes mais do que eu te ensinei... Responde ao que te pergunto: trazes o ovo ou não?
— Trago.
— Dá-mo cá.
— E depois como entro?
— Já vais ver.
Era Inverno e a Perrona trazia uma capa de burel. Pegou em mim ao colo e entrámos ambos por um ovo. O mais espantoso é que atrás de nós entraram várias matronas com os respectivos maridos, e outros que nem maridos eram, aconchegados ao seio.
O empresário, que também servia de porteiro, fechava os olhos e ria-se. Devia ser um desses génios artísticos que trabalham por amor à arte e não aos ovos. Pelas minhas contas, deve ter apurado, naquela noite, uma dúzia deles ou nem tanto. Dum modo ou doutro, quer os comesse, quer os utilizasse como moeda de troca na venda, tinha subsistência garantida para as próximas vinte e quatro horas. Depois Tália, protectora dos comediantes, providenciaria.
Resta-me dizer que a sala de espectáculos era uma corte na altura devoluta por falta de ovelha ou burro que a ocupasse. Por cima, a cozinha.
Casa cheia, porta fechada, começou o espectáculo. Espectadores, uns cinquenta. Os da frente acocorados no chão, os de trás de pé. Ao fundo, de parede a parede, um pano preto. Por detrás, à luz dum lampião, os bonecos.
A farsada metia partes gagas de muita e fina graça. A malta ria a bandeiras despregadas. No melhor da festa, grande reboliça por cima, na cozinha.
Os que estávamos mais perto da porta corremos escaleiras arriba a ver o que era. A Pinta e a Fecha, ambas já em idade de ter juízo mas desde há muito de candeias às avessas por questões amorosas, engalfinhadas uma na outra. As vizinhas tentavam separá-las. Mas elas, mutuamente catrafiladas pelos cabelos, não largavam. Aquilo choviam ali couces, murros, pragas e insultos que era um louvar ao Senhor e a Sua Mãe Maria Santíssima.
Por fim, ou por esgotamento das lutadoras ou imposição das árbitras, a contenda terminou. Alguém acendeu uma luz. A Fecha exibia a mão cheia de madeixas:
— Olhai onde a bruxa deixou o guedelho...
A Pinta exibia a mão cheia de pêlos:
— Olhai onde a puta deixou o pen...
Qualquer coisa a rimar com guedelho mas que eu não escrevo por extenso por respeito à moral pública.
— Mas porque é que elas se pegaram? — perguntei a uma das presentes mais ou menos da minha idade.
— A Pinta estava a espreitar por uma frincha. Vai a Fecha empurra-a: «Chega-te para lá que também quero ver.» A Pinta espetou-lhe uma bofetada. A Fecha atirou-se a ela. O resto, o que tu viste.
Vinha isto a propósito do valor dos ovos. Tal era ele que, por um, via um homem dois entremezes na mesma noite. 

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 112 e ss.)

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