Comemorou-se
ontem, 1 de Outubro, o «Dia Mundial do Idoso». Ficámos então a saber, pelos
variados simpósios e areópagos sobre o tema, e as variadas reportagens
televisivas e escritas que lhes deram cobertura, que 40% dos idosos portugueses
vivem no «limiar da pobreza» e o dobro destes na solidão.
Partindo
do princípio de que os fazedores de estatísticas não contaram comigo, vou dar-lhes
conta do meu caso.
É verdade
que vivo no tal «limiar da pobreza». Quanto a solidão, é mal de que me não
queixo. Estou sempre rodeado dum bando de fantasmas. Agora mesmo um deles se
sentou aqui à minha ilharga, nesta velha poltrona onde costumo reclinar-me quando
me sinto mais cansado, e me está a espremer a bossa das recordações com relatos
de aventuras que ambos vivemos pelos montes atrás das cabras.
Era
muito vaidoso e muito crendeiro o meu compincha de gandaia.
Por
vaidade, não largava uma caneta de tinta permanente que a mãe lhe dera por ter
feito exame de terceira.
Por
crendice, um dia em que a perdeu, foi pedir à Tia Ermelinda que lha responsasse.
Antes
de se concentrar, a velha pitonisa inquiriu:
—
E quando deste pela falta da caneta?
—
Hoje ao vir do monte com a rês.
— E tens a certeza que a levaste contigo?
—
Certezinha! Trago-a sempre no bolso de fora do casaco, bem à vista de toda a
gente…
—
Então conta-me tudo o que fizeste hoje. Passos que deste, pessoas com quem
falaste...
— Ó Tia
Ermelinda? Mas isto é algum exame de consciência? Eu não venho pedir que me
confesse. Venho pedir que me response a caneta!
—
Eu sei, meu filho. Mas preciso de dar algumas pistas a Sant'António. Também não
vamos exigir que o Santinho adivinhe tudo, não te parece?
—
Bem. Se assim é, tome nota.
E
o Liró, que assim se chamou em vida o meu fantasma de agora, deu ali conta
minuciosa de tudo quanto fizera naquele dia, não esquecendo que, durante a
tarde, bebera água na fontela da Corga de Sebastião Fernandes.
A
Tia Ermelinda ouviu, bichanou o responso e
disse:
—
A caneta não está perdida, quero dizer, ainda ninguém a encontrou. De modo que,
amanhã vais procurá-la, começando pela fontela da Corga de Sebastião Fernandes.
Liró
não pregou olho. E, mal luziu o buraco, saltou do ninho e correu à Corga de
Sebastião Fernandes. Lá estava a caneta à borda da fontela. Veio ter comigo:
—
Vou dar umas arrochadas à Ermelinda.
—
Porquê?
—
Para ela ver que não lhe tenho medo.
—
E porque é que lhe havias de ter medo?
—
Porque é bruxa... Não vês com que limpeza ela adivinhou onde estava a caneta?
—
Isso também eu adivinhava e mais não sou bruxo.
—
Não acredito.
— Ó lorpa?
Pensa um pouco. Trazias a caneta no bolso de fora do casaco. Debruçaste-te para
beber, caiu-te. Nada mais natural.
—
És capaz de ter razão.
—
Claro que tenho. Deixa a mulher em paz.
Adiante,
estava eu a meter a rês, aparece-me o Liró meio espavorido:
— Ó Marinheiro? Ó Marinheiro acode-me
que estou perdido.
— Não te preocupes. Alguém te há-de achar.
—
Perdi cinco ovelhas. Se o meu pai dá por ela, mata-me!
—
Não se perdia grande coisa.
—
Ai tu ainda brincas?
—
Que queres que te faça?
—
Me venhas ajudar a procurá-las.
—
Ainda não merendei.
—
Também eu não. Mas temos de aproveitar enquanto se vê. Em caindo a noite,
berimbau é gaita...
Fomos
à procura das ovelhas. O Liró bem gritava: «Rata cá rabona? Mé!... mé!...» Mas
só o eco lhe respondia na desoladora solidão do crepúsculo e dos montes.
—
Bem — disse eu. — Só te resta uma coisa.
—
O quê?
—
Pedires à Tia Ermelinda que tas response.
O
Liró foi ter com a vizinha. A velha pitonisa mastigou o responso e disse:
—
As ovelhas estão bem. Não te sei dizer onde, mas estão bem.
— Ó Tia
Ermelinda, response-mas outra vez, por favor.
—
Vai descansado. Enquanto elas não aparecerem, vou-tas responsar todos os dias.
O
Liró apanhou uma tareia do pai que lhe ficou de lembrança. As ovelhas só apareceram
oito dias depois no meio dum giestal. Interim, uma delas, que andava prenha,
dera à luz.
Vinha
o Liró com elas, feliz da vida, rua acima, diz-lhe a Tia Ermelinda, da soleira
da porta:
—
Vês, como valeu a pena responsá-las?
—
E bem responsadas Tia Ermelinda! Eram cinco, vieram seis...
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