sábado, 22 de fevereiro de 2014

O RESPONSO

Comemorou-se ontem, 1 de Outubro, o «Dia Mundial do Idoso». Ficámos então a saber, pelos variados simpósios e areópagos sobre o tema, e as variadas reportagens televisivas e escritas que lhes deram cobertura, que 40% dos idosos portugueses vivem no «limiar da pobreza» e o dobro destes na solidão.
Partindo do princípio de que os fazedores de estatísticas não contaram comigo, vou dar-lhes conta do meu caso.
É verdade que vivo no tal «limiar da pobreza». Quanto a solidão, é mal de que me não queixo. Estou sempre rodeado dum bando de fantasmas. Agora mesmo um deles se sentou aqui à minha ilharga, nesta velha poltrona onde costumo reclinar-me quando me sinto mais cansado, e me está a espremer a bossa das recordações com relatos de aventuras que ambos vivemos pelos montes atrás das cabras.
Era muito vaidoso e muito crendeiro o meu compincha de gandaia.
Por vaidade, não largava uma caneta de tinta permanente que a mãe lhe dera por ter feito exame de terceira.
Por crendice, um dia em que a perdeu, foi pedir à Tia Ermelinda que lha responsasse.
Antes de se concentrar, a velha pitonisa inquiriu:
— E quando deste pela falta da caneta?
— Hoje ao vir do monte com a rês.
— E tens a certeza que a levaste contigo?
— Certezinha! Trago-a sempre no bolso de fora do casaco, bem à vista de toda a gente…
— Então conta-me tudo o que fizeste hoje. Passos que deste, pessoas com quem falaste...
— Ó Tia Ermelinda? Mas isto é algum exame de consciência? Eu não venho pedir que me confesse. Venho pedir que me response a caneta!
— Eu sei, meu filho. Mas preciso de dar algumas pistas a Sant'António. Também não vamos exigir que o Santinho adivinhe tudo, não te parece?
— Bem. Se assim é, tome nota.
E o Liró, que assim se chamou em vida o meu fantasma de agora, deu ali conta minuciosa de tudo quanto fizera naquele dia, não esquecendo que, durante a tarde, bebera água na fontela da Corga de Sebastião Fernandes.
A Tia Ermelinda ouviu, bichanou o responso e disse:
— A caneta não está perdida, quero dizer, ainda ninguém a encontrou. De modo que, amanhã vais procurá-la, começando pela fontela da Corga de Sebastião Fernandes.
Liró não pregou olho. E, mal luziu o buraco, saltou do ninho e correu à Corga de Sebastião Fernandes. Lá estava a caneta à borda da fontela. Veio ter comigo:
— Vou dar umas arrochadas à Ermelinda.
— Porquê?
— Para ela ver que não lhe tenho medo.
— E porque é que lhe havias de ter medo?
— Porque é bruxa... Não vês com que limpeza ela adivinhou onde estava a caneta?
— Isso também eu adivinhava e mais não sou bruxo.
— Não acredito.
— Ó lorpa? Pensa um pouco. Trazias a caneta no bolso de fora do casaco. Debruçaste-te para beber, caiu-te. Nada mais natural.
— És capaz de ter razão.
— Claro que tenho. Deixa a mulher em paz.
Adiante, estava eu a meter a rês, aparece-me o Liró meio espavorido:
— Ó Marinheiro? Ó Marinheiro acode-me que estou perdido.
Não te preocupes. Alguém te há-de achar.
— Perdi cinco ovelhas. Se o meu pai dá por ela, mata-me!
— Não se perdia grande coisa.
— Ai tu ainda brincas?
— Que queres que te faça?
— Me venhas ajudar a procurá-las.
— Ainda não merendei.
— Também eu não. Mas temos de aproveitar enquanto se vê. Em caindo a noite, berimbau é gaita...
Fomos à procura das ovelhas. O Liró bem gritava: «Rata cá rabona? Mé!... mé!...» Mas só o eco lhe respondia na desoladora solidão do crepúsculo e dos montes.
— Bem — disse eu. — Só te resta uma coisa.
— O quê?
— Pedires à Tia Ermelinda que tas response.
O Liró foi ter com a vizinha. A velha pitonisa mastigou o responso e disse:
— As ovelhas estão bem. Não te sei dizer onde, mas estão bem.
— Ó Tia Ermelinda, response-mas outra vez, por favor.
— Vai descansado. Enquanto elas não aparecerem, vou-tas responsar todos os dias.
O Liró apanhou uma tareia do pai que lhe ficou de lembrança. As ovelhas só apareceram oito dias depois no meio dum giestal. Interim, uma delas, que andava prenha, dera à luz.
Vinha o Liró com elas, feliz da vida, rua acima, diz-lhe a Tia Ermelinda, da soleira da porta:
— Vês, como valeu a pena responsá-las?
— E bem responsadas Tia Ermelinda! Eram cinco, vieram seis...

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