Quando
um homem está a contar com uma coisa e lhe sai outra, fica sempre desconsolado.
Foi o que aconteceu comigo nesta quadra natalícia. Estava a contar com neve.
Afinal, o céu teimou em manter-se limpo, o sol a brilhar, a geada a cair. Uma espécie
de Janeiro antecipado. Nos meus tempos de garoto, dias destes, só a partir do
Ano Novo. Era então que o sol se tornava álgido, a lua altaneira, as geadas de
palmo.
Foi
por dias desses que eu aprendi a patinar no gelo. Nos lameiros onde eu guardava
as vacas, nessa época do ano sempre encharcados, formavam-se grandes lagos de
carambelo, verdadeiras tentações para umas acrobacias de patinagem artística,
as quais, no meu caso, não tinham arte nenhuma. Aquilo era tombo que te parte,
com grandes mossas no esqueleto, dum modo particular nas partes mais salientes,
género cóccix e cotovelos. Por amor ao esqueleto, mudei de táctica. Em vez de
esqui, passei a fazer escu. Consistia ele em cavalgar molhos de urzes ou
giestas e descer as encostas vidradas a grande velocidade, rédea firme, tronco
inclinado para trás, pernas em estradiota, goelas abertas, numa atitude
selvagem, nem mais nem menos ridícula do que aquela que mais tarde vi fazer a
pessoas mais civilizadas na montanha russa da Feira popular de Lisboa.
A
brincadeira valeu-me alguns rasgões nos fundilhos, outras tantas bofetadas de
minha mãe e ordens expressas de meu pai para me deixar de cavalgadas no gelo. E
dado que meu pai não era de brincadeiras, eu passei a esconder-me para as
fazer. Ia lá para uma touça com uma fonte e uma lameira em plano inclinado, sempre
coberta de gelo e tão recatada entre urzeiras como o toucador duma gueixa entre
biombos. Era aí que eu cavalgava matões a meu bel-prazer e à rédea solta.
Ora
uma tarde em que eu me entregava ao meu desporto favorito e proibido, sai-me
dentre as urzes o meu cão com um coelho na boca. Isto não teria nada de anormal
se, atrás do coelho, não viesse uma ratoeira a rastos. Recolhi o coelho ao
bornal, fiz umas festas ao Dezoito, que assim se chamava o cão, atirei
com a ratoeira à lura dum carvalho antigo e com o assunto para trás das costas.
Era
isto a um domingo e eu aluno da quarta classe. Vim para casa, meti as vacas,
ceei mais cedo e fui dormir a S. Vicente, onde, segunda-feira, a professora
exigia a nossa presença logo ao romper o dia. À hora
do recreio, estava o meu vizinho Joaquim do Fontenova, praça velha, direito
comigo. Pelos vistos, a ratoeira era dele. Neguei, claro.
—
Ai sim? E onde foste tu pelo coelho que ontem trouxeste para casa?
—
Agarrou-o o meu Dezoito.
—
Na minha ratoeira?
—
Não vi ratoeira nenhuma, já te disse!
—
Acuso-te à professora.
—
Acusa. Quero lá saber.
Nesta
altura da discussão já estávamos rodeados por todos os alunos das quatro
classes e uma boa parte dos vizinhos de S. Vicente. E até o senhor abade, que
regressava do passal de cabeção, batina, tamancos e sacho às costas, quis saber
que galega parira ali? Inteirado, pôs aquela cara de bondade e riso que era a
dele e disse:
—
Vá. Ide à vossa vida. Deixai-me aqui só com o Fontenova e o Marinheiro que lhes
quero um segredo.
A
malta dispersou. O pároco voltou-se para o Fontenova e inquiriu:
—
Quantos coelhos tens em casa?
—
Um.
—
Não. Tu, às ratoeiras que armas todas as noites, deves ter mais?
—
Bem. Se o senhor abade tem alguma incumbência, podem-se arranjar mais alguns.
—
Quantos?
—
Uns quatro ou cinco.
—
Preciso apenas de dois.
—
Onde quer que lhos deixe?
—
Entrega-los aqui ao Marinheiro.
—
Para quê?!
—
Ele te dizer onde está a ratoeira.
—
E o senhor abade fica por ele? — atalhei eu a rir-me.
Ele
ameaçou-me com um tabefe:
—
Anda, que tu és malandro, mas desta já eu te safei.
No
domingo seguinte, estando eu no adro entre um ror de rapazes e homens à espera
do toque de entrada para a missa, vem de lá o Faia de Travassos, sempre pantomineiro,
bate-me duas palmadinhas nas costas e exclama:
—
Ora aqui está o homem que matou três coelhos duma cajatada...
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 125 e ss.)
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