segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

EUGÉNIO

Eugénio de Andrade fez na semana passada 82 anos. A partir de certa altura, os aniversários são crepusculares rituais contra o esquecimento. Mas este era especial. Eugénio está doente, muito doente, e festejar o seu aniversário era um pouco como ficar algum tempo a seu lado segurando-lhe a cabeça na mão. Por isso os amigos decidiram juntar-se na sua casa do Passeio Alegre (a casa que Eugénio sempre quis que fosse, mais do que sua, a casa da própria poesia encheu-se de gente) para escutar de novo a voz dos seus versos. Eugénio não se sentou nessa noite no lugar da primeira fila onde sempre nos habituámos a vê-lo. No seu quarto do andar de cima, talvez dormisse. E, como num sonho, talvez, quem sabe?, distantemente lhe chegasse através das paredes translúcidas da doença o murmúrio de palavras antigas e perfeitas: mãe, mar, verão, memória. Ou o ruído caloroso das palmas no final de cada leitura. Nunca uma distância foi tão grande e tão intransponível como aquela, de alguns poucos imensos metros, separando o poeta da sua poesia, que é como quem diz separando-o de si mesmo.
Há no sofrimento algo de profundamente imoral. E algo de humilhante na luta da vida para negar a morte. «Tudo o que faz o verão subir a prumo / chegou ao fim. / / O frio, a sua teia branca, (...) não tardará», e, no entanto, a existência obstina-se contra a obscuridade, o corpo contra a sua própria determinação. «Fora / do corpo haverá alguma coisa?», algum móbil, alguma grande razão para além da razão?
A vida de Eugénio, ou a parte mais vital e, como dizer?, mais intransigente dela, foi, toda a gente o sabe, a sua poesia. Desapossado da poesia (Eugénio já não escreve; qualquer que seja o exasperado desígnio que move a vida contra a morte, o corpo contra o tempo, a poesia já não é para aí chamada), há algo que nem a doença nem o sofrimento podem tirar-lhe: aquilo que (a desperta luz dos sentidos, o fulgor rumoroso dos seres e das coisas) nos deu. Mas mesmo isso, mesmo a memória da infância ou, mais sombria e espessa, a memória dos amigos mortos, mesmo aquela passagem da Ilíada em que Príamo suplica a Aquiles que lhe entregue o corpo exangue de Heitor, mesmo os asfódelos em flor de Corfu, as maçãs verdes de Cézanne, os primeiros compassos da Lacrimosa, pouca coisa agora são.
O homem despojadamente frágil e humano que jaz no leito de Eugénio ou que paradamente se senta no sofá perto da janela (que pensará ele de nós quando nos olha sem nos ver ou quando, vindo de longínquos lugares, regressa de súbito ao nosso lúcido convívio e às nossas preocupações?) é hoje o palco extremo de um milagre mais fundo e mais inquieto do que o da poesia. E nenhuma palavra, nenhum poema é suficientemente grave para falar disso. Porque estamos todos sós. E porque não temos respostas. Provavelmente nem as perguntas certas temos, quanto mais respostas!
Uma grande ausência, um segredo que ninguém pronunciava em voz alta, asfixiava a casa, os móveis, os retratos na parede. Era talvez contra a ausência e contra a solidão que nesse dia de aniversário se erguiam, dizendo versos, as vozes dos amigos. Como se cada uma dissesse: «Tanta palavra para chegar a ti, / tanta palavra, / sem nenhuma alcançar / entre as ruínas (...)».

Visão, 27/01/2005 (Manuel António Pina)

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