quinta-feira, 7 de junho de 2012

Solar de Mateus, 8 de Junho de 1980

Abri mais uma vez o Sésamo da infância. É nele que guardo o pecúlio com que vou saldando as contas do mundo.

«Há coincidências estranhas num destino humano. Nos meus remotos tempos de menino realizavam-se por esta altura, numa casa religiosa aqui de Mateus, uns para mim misteriosos retiros a que duas senhoras lá da minha aldeia assistiam invariavelmente. Viajavam de burro. E o arreeiro era sempre eu, descalço, às topadas nas pedras dos atalhos, a comer o pó levantado pelo chouto das ferraduras. Trazia-as à tardinha, pela fresca, voltava com as azémolas, e vinha busca-las na data aprazada. Este grande palácio, então fabuloso na imaginação popular – tinha trezentas e sessenta e cinco janelas como os dias do ano – balizava-me as emoções da caminhada. Quando o descortinava ao fundo da paisagem, cercado dos seus belos jardins e encimado pelos seus pináculos e chaminés, alegrava-se-me o coração. Era o alívio da chegada, o suor enxuto, o deslumbramento dos olhos. De regresso, montado numa das jumentas, mal o perdia de vista entrava em pânico. O toque das Trindades ressoava no vale. O sol escondia-se por detrás do Marão. Adensava-se o crepúsculo. O resto da jornada teria de ser feito a tactear a noite. E com dois lustros de idade não se enfrentam de ânimo leve os fantasmas da escuridão.
Ora quis o acaso que, quase no termo de uma atribulada existência, eu começasse a frequentar por minha vez, nesta hospitaleira mansão, outros periódicos recolhimentos menos obscuros no meu entendimento. E que no decorrer de um deles fosse surpreendido pela notícia de que, na honrosa companhia do grande poeta do Brasil, Carlos Drummond de Andrade, acabara de ser distinguido, com o Prémio Morgado de Mateus.
Sem querer forçar o paralelo, não-posso deixar, contudo, de associar no meu pensamento a imagem da criança de outrora à do homem encanecido de hoje. E associá-las num misto de humildade e conformação, a perguntar a mim mesmo se os caprichos da roda da fortuna nos permitirão evitar certas horas, boas ou más. Temperamentalmente avesso a galardões de qualquer natureza, acabei no entanto por aceitar alguns deles. É que não há uniformidade de critério possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida. Que poderia eu fazer? Recusá-los por sistema, pura e simplesmente? Assim procedi quando tudo dependia da minha exclusiva vontade. Noutras ocasiões, porém, não era tão fácil a opção. Ao fim e ao cabo, nem a liberdade é livre. Para se exercer necessita pelo menos de uma constelação de referendas. Sabem-no bem todos aqueles que, embora autónomos, se vinculam aos valores da comunidade em que se integram e às leis formais da correcção. Além de que não seria curial enjeitar homenagens quando o seu significado diz mais respeito à pátria e à cultura do que a si próprio.
Nenhuma palavra, por mais sincera, é capaz de dar cabal testemunho da aflição que sinto na pele de laureado, da pouca valia em que me tenho e da convicção em que estou de que outros poderiam substituir-me neste transe. Por isso, no momento em que – sob a égide do nobre diplomata que tanto contribuiu para o tomar conhecido na Europa letrada – festejamos o génio de Camões, limito-me a declarar solenemente que é em nome da glória da poesia que aceito a recompensa de lhe ter sido apenas fiel. E aceito-a, ainda, movido pela cisma de que Mateus tinha um sentido oculto na trama dos meus dias. Queria dizer principio e dizer fim. O princípio de que estou longe e o fim de que estou perto.
O rapazinho que, inocentemente, olhava estas paragens como o mais dilatado horizonte mítico do seu agro nativo, volta de novo aqui velho e cansado, depois de calcorrear todas as veredas da ilusão e da desilusão. E volta para quê? Os fados é que o sabem exactamente, eles que, na sua ambiguidade, participam ao mesmo tempo da fatalidade e da quimera. Racionalmente rebelde ao império dos agoiros, deixo-me tentar pelo devaneio. E ponho-me a imaginar que voltei para repetir noutra escala as emoções do passado, na secreta esperança de que o espírito que paira neste solar, e que a vossa generosidade quis que hoje incidisse também na minha pessoa, fique desta vez a iluminar o caminho que ainda me falta percorrer».

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