quarta-feira, 6 de junho de 2012

Crónica com um brinde do autor

Se tivesse de escolher três livros não tinha dúvidas nenhumas: Emílio e dos detectives, Aventuras de Dona Redonda, Proezas e Tropelias do Serapião Tobias. Isto ainda hoje. Li-os dúzias de vezes, com um prazer que jamais tornou a repetir-se, um maravilhamento, uma alegria que não voltei a encontrar. Melhor que os carrosséis, melhor que os carrinhos de choque, melhor que marcar um golo nos jogos de hóquei. A par dos livros o hóquei era a outra paixão. O meu pai esteve nos campeonatos da Europa de 1938, na Alemanha, fez parte do que chamavam O Time Maravilha, do Benfica, havia em casa uma caixa de lata, cheia de medalhas, com as quais se podia brincar, pôs-nos ao João e a mim em cima de patins, isto aos cinco ou seis anos, e levava-nos a patinar todos os domingos de manhã
– Mais curvas para a direita, mais curvas para a direita
aos treze estava no balneário do Futebol Benfica, onde um dos miúdos, ao equiparmo-nos, me apontou aos colegas
– O pai do Ruço é doutor 
e ninguém acreditou, o miúdo para mim, a fim de tirar dúvidas
– Diz lá que o teu pai é doutor
e eu confirmei, envergonhado, aos catorze ou isso o treinador do Benfica, o senhor Lisboa viu-nos patinar e no primeiro treino, na cabine cheia de retratos de antigas glórias, lá estava o meu pai, nunca tive tanto orgulho nele como nesse momento, muito mais tarde, numa entrevista para o jornal A Bola, vinha uma fotografia com ele e os outros à partida para o campeonato na Alemanha e eu cheio de orgulho outra vez, a sensação, para um garoto, de vestir a camisola com emblema e tudo. É engraçado: o meu pai, que não nos tocava ou me tocava para me bater, estava a assistir a um jogo nosso no pátio do meu avô
(lembro-me disto com uma nitidez absoluta)
marquei um golo a seguir a um lançamento da esquerda, numa sticada à primeira, e ele correu a abraçar-me
– Grande golo, grande golo
dizia ele
– Grande golo
todo a brilhar, e nunca mais me abraçou. Fiquei parvo com aquilo, ainda me sinto parvo com aquilo. Veio a correr e tudo
– Grande golo, grande golo
e, como foi o único abraço, deve ter sido a coisa melhor que para ele fiz na vida. Na época o que me interessava eram os livros e o hóquei, escrevia que me desunhava, rasgava tudo a seguir e, lateralmente, embasbacava-me com as meninas de botas brancas e sainhas curtas da patinagem artística, que treinavam antes de nós e às vezes ficavam por ali a assistir às proezas da gente. Nenhuma actriz de cinema, mesmo aquelas dos filmes históricos, me impressionou tanto. E doía-me no coração que não me ligassem nenhuma, nem sequer a esmola de um olhar, sentadas na bancada ao lado das mães. Eu não existia para elas, era um ruço qualquer. Julgo que os outros garotos sofriam o mesmo triste destino. Às vezes encontrava-as no eléctrico para o liceu, mas sem as botas brancas, as sainhas, e as piruetas meio desequilibradas perdiam a graça toda, a minha paixão esfumava-se e as actrizes dos filmes históricos imensas em ecrãs imensos, descobriam de imediato o unicórnio que existe em mim. O drama era que, se as patinadoras não me ligavam nenhuma, com as actrizes não me coube melhor sorte: está para nascer uma, uma só, não peço mais, que me piscasse o olho do ecrãs para o meu lugar no segundo balcão onde, com os companheiros de turma, ia fazendo asneiras e dizendo piadas parvas, porque os adolescentes são tão cretinos. Deviam ter sido fuzilados no berço. E daí não sei, há adolescentes defuntos que me perseguem ainda sob o manto protector da Igreja Católica, São Luís Gonzaga, etc., horríveis de virtude, ou a nossa Sãozinha, agora um pouco esquecida, que pena, que ofereceu a vida pela conversão dos pais e até possuía um almanaque só dela, o Almanaque da Sãozinha, que a minha avó assinava, onde devotos agradecidos relatavam milagres. Lembro-me de uma senhora muito crente, muito pobre e muito cheia de fome, que descobriu não ter nada para comer na despensa, rezou à Sãozinha e entrou-lhe um coelho pela casa dentro, que se deixou apanhar e cozinhar numa docilidade absoluta, enquanto perfumes celestiais inundavam a casa. Palavra de honra que é verdade, tenho esse número do Almanaque desde os doze anos ou isso, eu que não guardo nada, de pasmado que fiquei. E poupo-vos mais criaturas deste calibre, porque a única coisa pior do que um menino insuportável é um menino bonzinho. Pensando melhor já não fuzilo ninguém no berço, vivam as bestas sadias, preferíveis aos chatos dos milagres, sempre a oferecerem a vida pela conversão da Rússia Comunista que bebe o sangue dos jovens inocentes (sic) e dá injecções atrás da orelha aos nossos pais se os apanharem a jeito. Quando me contrariavam com qualquer coisa, pateta para eles e, para mim, vital, se tivesse uma seringa à mão injetava-os eu, não precisava de ajuda dos comunistas para nada, e ficava a vê-los torcerem-se no soalho
– Perdoa, filho
enquanto me afastava a assobiar, vingado. Pelos dez anos já tinha na consciência uma boa dúzia de cadáveres e não percebo porque não sou mais célebre do que Billy The Kid que, ao arrebatarem-no ao nosso convívio, matava dezanove pessoas não contando, explicava ele, os mexicanos. Escolher entre Billy the Kid e São Luís Gonzaga é um problema que nem sequer se põe. E quanto aos perfumes celestiais vou ali e já venho, quem é capaz de fazer amor com o Espírito Santo em cima levante o braço. Só os ilusionistas, talvez, consigam isso, de pombo no ombro e uma data deles a nascerem das mãos, mas com tanto pombo a nascer das mãos quem consegue abraçar, quanto mais. Há pessoas a quem basta uma pagela do Sagrado Coração de Jesus, cheio de espinhos, para que as hormonas se paralisem. Ou uma santinha fosforescente. O meu amigo José Cardoso Pires usava uma expressão para isto, e peço desculpa a ouvidos sensíveis: tira a tesão a um mocho. Ele achava, o pecador, que a fotografia do pai à cabeceira inibia, ao passo que a fotografia do marido ajudava, maridos a sorrirem na moldura, aprovando. Pergunto-me como pude ser amigo de uma criatura repugnante a este ponto, de maneira que o repreendia com severidade apontando-lhe, como dedo firme, o caminho da virtude, alto e fragoso, mas no fim doce, suave e deleitoso. Vêem como Os Lusíadas são capazes de meter um crápula nos eixos? E aí estou de acordo com o outro, que sustentava que a poesia deve ter por objectivo a verdade prática, estou de acordo mesmo ignorando o que verdade prática significa. Basta a palavra verdade para eu começar com problemas.
– O que é a verdade?
perguntava Pôncio Pilatos e, neste ponto, poderia começar um texto erudito de quinhentas páginas acerca do assunto. Por acaso apetece-me mas, por azar, não me dão mais espaço. E por não me darem mais espaço me cerro, como diziam os antigos. Que bonito, me cerro. Há qualquer coisa de flor nesta expressão e espero que a primeira leitora que apanhar este brinde grátis lhe pegue devagarinho e enfeite com ele o cabelo. 
 António Lobo Antunes

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