Constituição a pedidoPublicado em 2012-07-30
O presidente do BPI, Fernando Ulrich, já classificara a decisão do TC que confirmou a inconstitucionalidade dos confiscos dos subsídios de férias e Natal a funcionários públicos e pensionistas de "negativa", "perigosa" e "inaceitável". Agora é o presidente do BCP, Nuno Amado, a clamar que foi "uma decisão muitíssimo infeliz".
A banca (falta conhecer a opinião de Ricardo Salgado, do omnipresente BES, para o ramalhete ficar completo) não só tem enormes responsabilidades na crise como tem sido beneficiária da maior parte dos sacrifícios que, a pretexto dela, vêm sendo impostos aos portugueses. Mas a banca quer mais do que o seu financiamento com a "ajuda" que a 'troika' cobra ao país em desemprego, fome e miséria ou do que a destruição do SNS que alimenta os seus negócios na Saúde, a banca quer também uma Constituição "sua", já que a Constituição da República se revela, pelos vistos, "negativa", "perigosa", "inaceitável" e "muitíssimo infeliz" para os seus interesses.
Nem Ulrich nem Amado o escondem: "É premente alguma revisão da Constituição" (Amado), e a decisão do TC pode "justificar a discussão de uma revisão constitucional, o que até seria positivo" (Ulrich).
Numa democracia que cumprisse os serviços mínimos, os desejos de dois banqueiros valeriam apenas dois votos. Não tardará que vejamos quanto valem num regime do género "que se lixem as eleições".
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terça-feira, 30 de julho de 2013
domingo, 28 de julho de 2013
Quote of the Day > July 28, 2013

“Once upon a time there were four little Rabbits, and their names were -- Flopsy, Mopsy, Cottontail, and Peter. ”
― Beatrix Potter
Nesta data e na anterior, escreveu Miguel Torga em 1977 e em Coimbra...
Às
vezes fico-me a pensar se não irei por um caminho errado. Se, herdeiro da minha
própria contestação, me não terei transformado num polícia de mim mesmo. Se não
vivo a acautelar o verbo para me não desmentir.
Ainda a propósito da nota de ontem. No fundo, a sociedade e os respeitos
humanos acabam por perder o artista, exigindo-lhe a coerência dos que vivem a
rotina dos dias. Dos que dão hoje os mesmos passos de ontem, e que darão amanhã
os mesmos passos de hoje. Se as vozes do mundo o deixassem ser só quem é, ele
até podia ser um poço de contradições. Natureza imprevisível, o pior que se
pode pedir a um poeta é que seja fiel às suas palavras.
Nesta data, em 1966, escreveu J. Gomes Ferreira...
Sonho pouco. Ou com mais
propriedade: raras vezes me recordo dos sonhos nocturnos.
Esta manhã, porém, embora me tenha esquecido
de inúmeros pormenores de ligação, lembro-me perfeitamente do pesadelo da noite
passada.
Tudo começou num
elevador, onde entrei na companhia dum homem de olhos de galo – elevador que, em lugar de subir,
não sei por que manobra onírica, pôs-se a andar horizontalmente.
A certa altura parou e o
homem de olhos de galo disse-me que saltasse.
Encontrei-me então numa
cidade desconhecida em que o edifício da praça principal ostentava na fachada,
em letras enormes, um VIVA A MONARQUIA! insólito.
Desejoso de descobrir o
nome da cidade, percorri-a em várias direcções, embora soubesse que a
verdadeira razão dessa busca era outra, aliás impossível de descobrir.
A imagem mais
perturbadora foi a última: uma longa sala em cotovelo, espécie de enfermaria onde se enfileiravam
dezenas de leitos, enquanto, no chão, um bicho repelentemente enorme e gordo
perseguia um aranhiço de pernas finas.
Neste momento a luz
apagou-se.
Quando reapareceu, a
aranha das pernas finas tinha devorado o monstro gordo do pesadelo.
sábado, 27 de julho de 2013
July 27

“...you can hate a place with all your heart and soul and still be homesick for it.”
― Joseph Mitchell
sexta-feira, 26 de julho de 2013
July 26, 2013
“The meeting of two personalities is like the contact of two chemical substances: if there is any reaction, both are transformed.”
- C. G. Jung
- C. G. Jung
domingo, 21 de julho de 2013
DEUS TE SALVE, TERRA ABENÇOADA
Nestes últimos dias de Maio que hoje finda, um siroco de má
casta varreu Portugal de lés a lés. As temperaturas subiram a graus proibitivos
nos termómetros e a Direcção-Geral de Saúde começou a difundir aos velhos as
recomendações do costume: roupas leves, claras, e muitos líquidos, de
preferência água. Eu assim fiz. Pus-me em calções e vá de emborcar copos de
água uns atrás dos outros. Às tantas disse para comigo: ainda vou ficar
hidrópico, E para que tal me não acontecesse, fui misturando água e vinho na
proporção recomendada por Horácio, que foi tão bom cultor das Musas como das
uvas, prenda que já lhe valeu, da parte dum abstémio da família dos aquae potoribus, que é como o autor da Arte Poética apelida os poetas sem
estro, o apodo de bêbado. Quem, a
pretexto de combater o calor, ia ficando bêbado, fui eu.
Como toda a gente reconhece e lamenta, o Porto é uma cidade
doentia. Húmida, enevoada, tóxica. Um foco de doenças respiratórias e
articulares. Nestes últimos dias de Maio, então, nem queiram saber. Lembrava
Pompeia de há mil, novecentos e tal anos, horas antes de começarem a cair sobre
ela as lavas do Vesúvio. Um sopro de fornalha, um céu de cinza, um sol de
eclipse. De fugir. Foi o que eu fiz. Após uma noite em claro, palpitações e faltas
de ar, meti-me no carro e pus-me ao fresco em direcção a Barroso.
Saí da Cidade da Virgem ainda com o sol brando. Mas ao
atravessar Braga, já ele prometia os quarenta graus previstos pelos
meteorologistas. À vista da Serra do Gerês, respirei fundo. Como os montes
estão bonitos! Que abundância e variedade de cores! Que estupendas manchas de
amarelo pelas encostas! São as giestas, nesta altura do ano, no melhor da vida.
Eu gosto do amarelo. Não por causa das giestas, mas dumas fitas que, em tempo
de ingénuas ilusões jamais concretizadas, passeei por Coimbra.
Fiz o resto da viagem a pensar em giestas.
No meu tempo de rapaz, com todos os terrenos cultivados, não
havia giestas amarelas em Peireses. Agora, com a maioria deles de pousio,
invadem tudo. Para além de nos encherem os olhos de amarelo durante quinze dias
por ano, que outra serventia terão elas? A de competir com as silvas,
provavelmente.
Há quem diga que dão boa lenha. À minha lareira nunca foram.
Por isso me não pronuncio. Uma coisa me parece clara. Para vassoiras, a giesta
branca é melhor. Disso tenho eu experiência. Quando pastor, e por ordem de
minha mãe, fartei-me de fazer vassoiras de giesta. Muito mal feitinhas, verdade
seja dita. Para vassoiras de giesta, não havia como a Dolotéria do Cortiço.
Dolotéria! Que raio de nome… E sabem quem lho pôs? O padre de Cervos, a cuja
paróquia o Cortiço pertence. Quando lhe apareciam filhos ilegítimos para
baptizar, estigmatizava-os com nomes estapafúrdios. Que culpas teriam as
crianças do pecado dos pais? Quem no…
Voltando à Dolotéria. Como filha de cabaneira, era
extremamente pobre. E para não morrer à fome, especializou-se em vassoiras de
giesta.
As vassoiras da Dolotéria eram autênticas obras de arte.
Cabos altos, fortemente enleados com raízes de carqueja, copas redondas,
aparadas a tesoira. Faziam bom serviço e duravam uma eternidade. Por isso eram
muito apreciadas pelas donas de casa.
A Dolotéria tinha amigas em Peireses. De vez em quando aparecia
com uma braçada de vassoiras e presenteava-as. Estas retribuíam o presente com
um naco de broa ou de carne, uma cesta de batatas, uma chouriça, uma gabela de
couves da horta. Outros tempos, outros usos. Hoje já ninguém usa vassoiras de
giesta e é pena.
Disso mesmo se lamentava a Ana do Pinto, recentemente
falecida com noventa e muitos anos, quando, uma tarde, em amena conversa
comigo, me dizia, num tom de espanto e censura:
– Oh, rapaz! Estas putas de agora até as vassoiras compram…
A pensar em giestas e vassoiras cheguei ao Alto de
Ortigueira, donde se avista Peireses. Com a devoção com que outrora os
peregrinos pedestres à Terra Santa, à vista de Jerusalém, ajoelhavam, parei,
saí do carro e descobri-me. Sabedoras do quanto eu gosto de as ouvir, as
cotovias acorreram a saudar-me. Uma aragem fresca e perfumada envolveu-me todo
o corpo numa sensação de bem-estar celestial. Que diferença entre este paraíso
e o inferno do Porto. Enchi o peito de ar e murmurei: «Deus te salve, terra
abençoada!»
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 91 e ss.)
sábado, 20 de julho de 2013
Dias contados
Saí do Seminário no fim do 6.º ano, em meados de 1961, e passei
a frequentar o mar de Esposende, em cuja praia encontrei uma lina menina e a sua
mãe. Fiquei amigo delas e passei a visitá-las na casa onde moravam, a meio da Avenida
Rocha Gonçalves, onde eu também vivia, no n.º 4. Tornamo-nos especiais
amigos, até que de lá saíram e nunca mais as vi. Aquelas amigas eram a Mónica e
a mãe Agustina Bessa-Luís.
Casualmente li no último número do JL os Dias contados da Mónica.
Já não se deve lembrar de mim, mas não resisto sem guardar e
transcrever aquele autobiógrafo, com um velho abraço.
AUTOBIOGRAFIA
Mónica
Baldaque
Dias contados
Mónica Baldaque, 67 anos, é escritora, pintora e ilustradora. Com o Curso Superior de Pintura, foi conservadora de museus (e diretora
do Soares dos Reis, do Porto), tem feito exposições individuais e participado em coletivas, é autora de livros infanto-juvenis e de ficção, tendo o último, de contos, Vinte anos na província (Sextante), acabado de sair
Nasci na província, à meia - noite de um domingo de 12
para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente
brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico
vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as
vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava, como se
preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar
de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz. Aquela
casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas
de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o
escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e contínua, para sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito,
escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para
eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto
ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma
criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural
eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos
adultos.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa
dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no
corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei
que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito
calor, eu lia na sala às escuras as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as
suas três primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas e agitadas.
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir -me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer.
Mas o tempo da primeira infância, passei -o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha mãe escrevia e tratava de mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5 quilómetros por dia! Muito pequena,
já olhava as plantas com imensa delicadeza e ternura. Chegava a casa
sempre com um raminho de alecrim.
Mudámos entretanto para o Porto. Gostei de fazer a primária
na escola pública de Cedofeita. Lembro-me de todas as amigas que lá tive, da
rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes tílias
que o ensombravam. E de escrever no caderno -1952.
Depois, o Liceu Carolina Michaelis, a que não consegui adaptar-me. Não gostava do
edifício, nem dos corredores, nem dos recreios. Tudo aquilo era inóspito e
hospitalar. O meu rendimento era mau. Mudaram-me para o Colégio da Paz, das freiras
Doroteias.
Sempre me enfastiaram as aulas. Bom, era o tempo de
férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e resistente.
Nunca tive medo de nada. Nem do escuro, nem dos mortos,
nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do lado dos personagens mais
temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado da luz e do bem, mas pelo prazer de os
desmontar.
A gente do Paço, de Vila Meã, da parte de meu avô materno, era
uma gente valente e
aventureira. E a aventura não implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu, sem de lá ter saído.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
A minha tia Amélia (a Sibila), recebia-me à porta da
cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental comprido, e um grosso
cordão de ouro ao pescoço. ''Aqui todos trabalham" - dizia-me.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me
sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que
usava no Douro pelo avental de chita... Aprendi a fiar linho e a dar de comer
aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia
de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do
cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas
como os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs de meu avô
materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas
consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avô, já convivi mais. Não confiava nada nele.
Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e
só voltava de madrugada. O avô jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa-e-espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu
bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no
inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes
do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis,
que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias,
na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não
havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia
todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História, na Faculdade de Letras do Porto.
Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a
decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto,
e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma
senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação
Kasher, e
contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e
adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz,
demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado
pouco do que eu realmente precisava para seguir o meu destino. Precisava do
nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte
castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi urna casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser
essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só
meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos. JL
JL
– Número 1116 * De 10 a 23 de julho de 2013 * pág. 36
terça-feira, 16 de julho de 2013
A "vida fácil" dos outros
Os números são relativos a 2010, ainda antes do PEC 1, PEC 2 e PEC 3, do memorando da "troika" e do Governo PSD/CDS: 18% dos portugueses, segundo o INE, e 25,3%, segundo o Eurostat, estavam em "risco de pobreza", eufemismo estatístico que significa que viviam com menos de 421 euros/mês, ou seja, que eram pobres.
Entretanto, Passos Coelho chegou a primeiro-ministro, clamando que "os portugueses não podem suportar mais sacrifícios". Afinal, podiam: em pouco mais de um ano, o desemprego subiu de 10,8% para 15,2%, foram drasticamente reduzidas as prestações sociais, confiscados, contra todas as promessas eleitorais, os subsídios de férias e Natal a funcionários públicos e pensionistas e aumentado o IVA para 23%, subiram para valores incomportáveis as taxas moderadoras no SNS, reduziram-se até à irrelevância as deduções no IRS e IRC e as isenções no IMI, aumentaram brutalmente os transportes, a electricidade e o gás, despedir tornou-se fácil e barato, multiplicou-se o trabalho precário e sem direitos, regressou o trabalho infantil...
Hoje há 1,4 milhões de pensionistas a viver com menos de 500 euros/mês, 550 mil trabalhadores com 485 euros (431,6 após os descontos) e 416 mil desempregados não recebem subsídio de desemprego. Tudo isto, como explicou Cavaco Silva a um jornal holandês, porque foram "demasiado negligentes e estão hoje a sofrer as consequências de "uma vida fácil".
JN, 16/07/2012 – M. A. Pina
quarta-feira, 10 de julho de 2013
10 de Julho [1966]
O Chianca de Garcia que
recomeçou as suas crónicas do Rio de Janeiro no Diário de Lisboa, falando do Campeonato de Futebol do Mundo (actual
loucura do planeta e, principalmente, do Brasil) citou, a propósito, estes
versos de circunstância de Carlos Drummond
de Andrade, publicados recentemente, por certo com aplausos gerais:
… enquanto o
povo preso ao transístor
com angústia,
impaciência, febre, amor,
nosso escrete
acompanha pela Europa
– não nos
deixes, Pelé, sem esta Copa.
Não pude
deixar de pensar: e se eu ousasse publicar em Portugal uns versos ao nosso
futebolista Eusébio,
que diriam de mim?
Que era parvo
– pelo menos. (Até porque me falta a autoridade do talento do Drummond.)
J. Gomes Ferreira
O valor das palavras
Os jovens candidatos a "boys" do PSD ouviram da boca do homem que assegurou, jurou, afiançou, afirmou, asseverou, prometeu, garantiu que não aumentaria o IVA e que "do nosso lado, não contem com mais impostos" e ainda que acusá-lo de tencionar confiscar os subsídios de férias e Natal era um "disparate", que é "perverso" "o recurso à via do trabalho temporário para resolver necessidades permanentes" do SNS e que o país não pode aceitar a "proletarização da juventude portuguesa baseada em recibos verdes, em que as pessoas são obrigadas a pagar com os recibos verdes aquilo que as entidades que as contratam não estão disponíveis para pagar".
As afirmações foram proferidas por Passos Coelho na festa do 38.º aniversário da JSD em resposta a uma questão do presidente desta estrutura, Duarte Marques, sobre o caso dos enfermeiros do SNS contratados a empresas de trabalho temporário a 3,96 euros por hora.
Fixemos este nome, Duarte Marques, porque, com tal capacidade para dar, no momento certo, a deixa certa para que o líder possa dizer o que os eleitores querem ouvir, o rapaz irá decerto longe.
Os futuros "boys" aprenderam ainda uma lição fundamental: em política faz-se o que se quer mas diz-se o que, em cada momento, convém. Se for necessário até, como o mestre, que "precisamos de valorizar a palavra para que, quando ela é proferida, possamos acreditar nela".
JN, 10/07/2012 – M. A. Pina
Coimbra, 10 de Julho de 1975
Como o homem
seria desgraçado se não tivesse o dom maravilhoso de imaginar, de fantasiar, de
sonhar! O que teria sido de mim se todo eu estivesse amarrado a este quotidiano
doméstico e social! Mas não. Desde criança que sei que há um reduto
inexpugnável: a clandestinidade do espírito.
Miguel Torga
Coimbra, 10 de Julho de 1974
O afinco com
que esta civilização se quer desacreditar e destruir! Envergonhada, no fundo,
da consciência que tem dos próprios pergaminhos, morbidamente apostada na
denúncia casuística das suas motivações originais, tanto se desmitificou, tanta
psicanálise fez de si, que acabou por ficar sem mitos, sem crenças, sem valores
e sem pé na vida.
terça-feira, 9 de julho de 2013
José Rodrigues Migueis: 9 de Julho de 1978
• O seu amor de velho tinha,
necessariamente, aos olhos dos estranhos, sobretudo dos jovens, algo de anormal
e vicioso. Mas do amor, corno do resto, quem pode julgá-lo sem o ter experimentado?
A letra escarlate
Quis o acaso objectivo que o debate na AR de uma petição da chamada Federação Portuguesa pela Vida tenha sido marcado para dias antes da data de nascimento de Calvino. E a Fé Reformada que anima hoje a desamparada social-democracia que sobrevive no nome do PSD não se fez rogada à predestinada coincidência.
Por insondável determinação divina (se não do próprio Calvino), foi a deputada Conceição Ruão a eleita para ser a voz da Verdade Moral no Parlamento: às mulheres levadas a abortar deve ser imposta a "obrigatoriedade da assinatura da ecografia da idade do feto" (pressupõe-se que depois de obrigadas também a olhar longamente a ecografia repetindo "minha culpa, minha tão grande culpa", enquanto no sistema áudio do hospital se escutam hinos religiosos e "slogans" da tal Federação pela Vida). Tudo indica que Deus terá assim querido castigar as mulheres que abortam com a pior das humilhações: receber lições de moral do PSD.
Seguir-se-á a letra "A" de "Aborto" bordada a vermelho no peito, para os mesmos elevados fins morais do "A" de "Adúltera" do romance de Hawthorne.
Obviamente, a auto-estigmatização das mulheres defendida pelo PSD aplica-se às que recorrem ao SNS e a médicos e enfermeiros pagos a 4 euros à hora (na sua grande maioria, segundo as estatísticas, trabalhadoras fabris, camponesas ou desempregadas) e não às que recorrem a médicos privados e clínicas de luxo.
JN, 09/07/2012 – M. A. Pina
Coimbra, 9 de Julho de 1975
EXPECTAÇÃO
Devolvo à
tarde triste a luz que me entristece,
E vou
entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além,
a linha do horizonte.
Mas repreendo
os olhos e regresso
À página vazia
Onde,
possesso,
Aguardo que
desponte
A luz de um
novo dia.
Um dia alegre,
Limpo,
Singular,
De nenhuma
semana,
De nenhum mês,
De nenhum ano,
Miraculosamente
amanhecido
Nas sílabas de
um verso enfeitiçado,
A ressoar,
medido e desmedido,
Na concha do
ouvido
Deslumbrado.
Miguel Torga
segunda-feira, 8 de julho de 2013
8 – Julho (domingo). [1990]
Creio que estou em «contagem decrescente», como se diz em astronáutica. A
cabeça desconjuntada. Os guinchos nos ouvidos. Hoje de manhã acordei tonto. Fui
à casa de banho e depois à cozinha beber água das Pedras. Mas quando voltei a
deitar-me, de novo me tomou a vontade de vomitar. Sossegou.
E tomado o café, saí a buscar o jornal. Tudo fechado. Tive de ir à avenida
da Igreja. E ao regressar, no largo da Caixa aqui ao pé, vi dois jovens
acocorados a calcetar o pavimento. Um teria uns vinte anos, outro uns
dezasseis. O de vinte anos era louro e trabalhava de tronco nu. Tinha a pele
queimada. E eu pensei – é a praia que te cabe. E reconfortado na consciência
por este pensamento progressista, regressei a casa abrasado de calor. As ruas
desertas. Só o sol pesado no asfalto.
*
Foi bom, como disse, não ter recebido o convite de Mário Soares para o
jantar de Coimbra. Estou destruído, não me tenho em mim. Mas também foi pena por
não ler revisto a minha cidade mítica. Quanto a lembro. Mas onde ela me é um
mito é aí, no lembrar. E no que converge para essa lembrança até ao seu ponto
mais alto de esplendor. Coimbra, aliás, está morta, mesmo no que foi vivo nela,
quando lá estive. Em todo o caso. Ainda lá está o sítio junto ao gradeamento no
pátio da Universidade, donde se via o rio, Santa Clara e o que de lá devia acenar-me
desde o tempo perdido. Mas já lá não está o banco para um devaneio repousado. Never more. Quem vem escolher-me os lugares
da minha evocação? Não me foi favorável, Coimbra. Nem a sei dos lugares estabelecidos
para a memória e o turismo. Toda a cidade me ficou no banco junto ao gradeamento
e na volta rápida junto ao murete, à entrada da Faculdade. Tudo tão pouco. Tudo
tão tanto.
*
Cada época tem a sua personagem típica, a que a resume e define. No 25 de
Abril essa figura era um tipo de ar possante, alastrado de barbas, camisa
aberta sem gravata, uma aparência agradavelmente suja, uns braços titanescos
para erguerem o Mundo a pulso. No tempo de Salazar a personagem típica era um
sujeito asséptico, sem contactos visíveis com as coisas materiais mas apenas
com as ideias ou no máximo com os relatórios de um banco. Na Primeira
República, o que a resumia era um tipo tribunício, de pera e bigode no momento
de falar às turbas indisciplinadas e toscas, de fatos grosseiros e empenados. E
por aí fora. E no nosso tempo? No nosso tempo, desde há uns cinco ou seis anos,
o tipo mais representativo é um sujeito seco, austero, também asséptico à sua
maneira, suspendendo uma pasta de papéis e que é uma espécie de caixa
espalmada, aliás de mais peso que uma pasta tradicional, engravatado, mesmo em
mangas de camisa, o ar complacente e breve mas sempre na vertical, e cuja
missão ou vocação é lidar com finanças e economia ou ser, já mais abaixo, um
gestor de empresas. Que é que passará na cabeça deste sujeito, além de cifrões?
Que é que significará para ele, por exemplo, a família, fora das recepções
mundanas ou das férias no estrangeiro? Quais as relações com os filhos a não
ser as que passam pelos cheques? Como encara a hipótese de a mulher ter o seu
amante privativo ou mesmo o aleatório de uma aventura? Lerá alguma coisa além
dos livros técnicos ou das revistas de economia ou do movimento do câmbio e das
acções? Para elucidação dos vindouros, faz falta hoje uma estética à Eça que
nos deu do seu tempo a Imagem do político. Sobretudo faz falta quem um pouco
reflicta sobre o que une esta figura ao vazio do nosso tempo. Porque são tão
afins.
*
Senta-te a meu lado e dá-me a tua mão. Entardece devagar, um cinzento ténue
estende-se pelo céu. Não digas nada, olha apenas. E ouve a balada que diz todo
o possível dizer. Vem nela o aceno vão do que será um dia a memória da
eternidade deste instante. É uma balada longínqua, insinuada ao silêncio que
nos cobre, como uma saudação à noite. Estou tão cansado. E tão só. Senta-te ao
meu lado e dá-me a tua mão. É frágil como a ternura. E violenta como a ameaça
de um choro. Senta-te e olha e sê o absoluto da tua graça irreal no absoluto da
minha solidão.
Vergílio Ferreira
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