segunda-feira, 8 de julho de 2013

8 – Julho (domingo). [1990]

Creio que estou em «contagem decrescente», como se diz em astronáutica. A cabeça desconjuntada. Os guinchos nos ouvidos. Hoje de manhã acordei tonto. Fui à casa de banho e depois à cozinha beber água das Pedras. Mas quando voltei a deitar-me, de novo me tomou a vontade de vomitar. Sossegou.
E tomado o café, saí a buscar o jornal. Tudo fechado. Tive de ir à avenida da Igreja. E ao regressar, no largo da Caixa aqui ao pé, vi dois jovens acocorados a calcetar o pavimento. Um teria uns vinte anos, outro uns dezasseis. O de vinte anos era louro e trabalhava de tronco nu. Tinha a pele queimada. E eu pensei – é a praia que te cabe. E reconfortado na consciência por este pensamento progressista, regressei a casa abrasado de calor. As ruas desertas. Só o sol pesado no asfalto.
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Foi bom, como disse, não ter recebido o convite de Mário Soares para o jantar de Coimbra. Estou destruído, não me tenho em mim. Mas também foi pena por não ler revisto a minha cidade mítica. Quanto a lembro. Mas onde ela me é um mito é aí, no lembrar. E no que converge para essa lembrança até ao seu ponto mais alto de esplendor. Coimbra, aliás, está morta, mesmo no que foi vivo nela, quando lá estive. Em todo o caso. Ainda lá está o sítio junto ao gradeamento no pátio da Universidade, donde se via o rio, Santa Clara e o que de lá devia acenar-me desde o tempo perdido. Mas já lá não está o banco para um devaneio repousado. Never more. Quem vem escolher-me os lugares da minha evocação? Não me foi favorável, Coimbra. Nem a sei dos lugares estabelecidos para a memória e o turismo. Toda a cidade me ficou no banco junto ao gradeamento e na volta rápida junto ao murete, à entrada da Faculdade. Tudo tão pouco. Tudo tão tanto.
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Cada época tem a sua personagem típica, a que a resume e define. No 25 de Abril essa figura era um tipo de ar possante, alastrado de barbas, camisa aberta sem gravata, uma aparência agradavelmente suja, uns braços titanescos para erguerem o Mundo a pulso. No tempo de Salazar a personagem típica era um sujeito asséptico, sem contactos visíveis com as coisas materiais mas apenas com as ideias ou no máximo com os relatórios de um banco. Na Primeira República, o que a resumia era um tipo tribunício, de pera e bigode no momento de falar às turbas indisciplinadas e toscas, de fatos grosseiros e empenados. E por aí fora. E no nosso tempo? No nosso tempo, desde há uns cinco ou seis anos, o tipo mais representativo é um sujeito seco, austero, também asséptico à sua maneira, suspendendo uma pasta de papéis e que é uma espécie de caixa espalmada, aliás de mais peso que uma pasta tradicional, engravatado, mesmo em mangas de camisa, o ar complacente e breve mas sempre na vertical, e cuja missão ou vocação é lidar com finanças e economia ou ser, já mais abaixo, um gestor de empresas. Que é que passará na cabeça deste sujeito, além de cifrões? Que é que significará para ele, por exemplo, a família, fora das recepções mundanas ou das férias no estrangeiro? Quais as relações com os filhos a não ser as que passam pelos cheques? Como encara a hipótese de a mulher ter o seu amante privativo ou mesmo o aleatório de uma aventura? Lerá alguma coisa além dos livros técnicos ou das revistas de economia ou do movimento do câmbio e das acções? Para elucidação dos vindouros, faz falta hoje uma estética à Eça que nos deu do seu tempo a Imagem do político. Sobretudo faz falta quem um pouco reflicta sobre o que une esta figura ao vazio do nosso tempo. Porque são tão afins.
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Senta-te a meu lado e dá-me a tua mão. Entardece devagar, um cinzento ténue estende-se pelo céu. Não digas nada, olha apenas. E ouve a balada que diz todo o possível dizer. Vem nela o aceno vão do que será um dia a memória da eternidade deste instante. É uma balada longínqua, insinuada ao silêncio que nos cobre, como uma saudação à noite. Estou tão cansado. E tão só. Senta-te ao meu lado e dá-me a tua mão. É frágil como a ternura. E violenta como a ameaça de um choro. Senta-te e olha e sê o absoluto da tua graça irreal no absoluto da minha solidão.

Vergílio Ferreira

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