
*
Saturado da literatura, escrevo, escrevo. É um acto
necessário sem necessidade para esse acto. Toda a literatura me parece de
súbito vã. Que quer dizer criar ainda a realidade que é sua? A realidade que é
sua é apenas a música que em nós ressoa por fim. Porque não falar dela apenas?
A voz do vento, o rumor do lume, o silêncio de uma sala iluminada de sol. Como
é possível sobretudo achar qualquer interesse na feira imensa do modo de se ser
humano? O ser humano é o ser, o seu insondável, a sua morte. Como é possível
talhar nele uma «história», engrená-la em brinquedo como um mecano? A sua
história não tem sentido para se lhe poder inventar um. Como é possível ser-se
um começo de evolução mental, para se adoptar e exaltar a sua menoridade? A sua
evolução di-la a sua velhice ou o que antes dela é o que pensa a vida como uma
coisa muito séria.
Saturado de literatura, abandonado de literatura, escrevo,
escrevo. É a pressão enorme de criar, sem razão de haver barro para a criação…
*
Que fazes tu na vida? Não sei. Cheguei ao limite em que o
fim de vez em quando me queima de evidência. Mas persistes em viver nesse gosto
de viver. Persisto, há uma ligação feroz ao que em breve não será meu. O quê?
Tudo, não sei. As coisas, as pessoas. É como se a minha morte fosse uma
condenação pessoal não determinada para os outros. Como se daqui a cem anos os
que ficam estivessem ainda e só eu não. Estupidez, não é assim? Estupidez. Mas
nunca se sente pelo que se pensa porque o pensar tem o seu destino próprio a
que o sentir é alheio. Podes ter ao menos um pouco de vergonha de ser assim.
Tenho.
*
E insensivelmente tu voltas. Fluída, translúcida à opacidade
da terra. Ou não voltas – apareces na eternidade do teu ser. Aí estás, imóvel,
feita da legenda de todo o meu imaginário, incorruptível e para sempre. Vens na
balada, nela te suspendes, transmigrada a uma música terna e difícil. Vens na
balada, estás aí, grave, um vislumbre de sorriso e cansaço e pacificação. A
balada passou. A tua imagem também.
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