quinta-feira, 16 de agosto de 2012

PRAGAS VELHAS

Passei três quartos do século XX a olhar para o XXI como quem olha para uma miragem inacessível. Afinal, cá estou eu às portas de 2007.
Boa altura para uma pausa na jornada e uma vista de olhos ao balancete da minha vida. Que tristeza! Sonhei mundos e fundos e, contas feitas, acabo de mãos vazias.
Porque teria eu fracassado?
Pedi à minha amiga Cassilda, que só me leva cinco anos e passa por mulher de virtude, que me lesse o responso e me dissesse porque é que eu, que tanto prometia em rapaz, nada tenho para dar em velho.
A Cassilda, que estava sentada numa trípode em forma de mocho à lareira, saiote puxado para os joelhos e canelos nus manchados de murras, pôs as mãos ao alto e os olhos em branco, ou, melhor dizendo, em amarelo, porque sofre de triz crónica, e assim esteve por espaço de meia hora a bichanar o responso.
Por fim regressou do transe, toda ela estremeceu numa descarga cavernosa de flatulências gástricas e disse:
– Isso foi praga que te rogaram.
– E quem é que me ia rogar uma praga se eu nunca fiz mal a ninguém?
– Deixa ver se descubro.
E a menina Cassilda, porque ainda se mantém solteira, embora virgem não direi, nem ela, honra lhe seja, invocou de novo o oráculo e, com um novo alívio de flatulências encruadas, disse:
– Não foi só uma praga que te rogaram. Foram dúzias deias.
– De quem?
– De velhas. E olha que de velha que roga praga, «mulher que sabe latim, mula que faz him e ovelha que faz mé, libra nós e domine».
– Mas eu nunca fiz mal a velha nenhuma!
– Não. Tu alguma lhes fizeste. Há muitos anos, que isto são pragas velhas, as piores de todas.
– Quanto te devo, Cassilda?
– Nada. Fica em paga da roca que uma vez me deste.
– Não me lembro.
– Que te não lembras? Andávamos ambos com a rês no monte e tu passavas o tempo a fazer rocas que depois vendias na feira de Montalegre a cinco tostões cada. Um dia ofereceste-me uma com um coração varado por uma setra aberto a ponta de canivete no cabo, por sinal tinto de sangue porque tu, em vez de atirares a navalha ao pau, atiravas com ela aos dedos. Não te lembras?
– Estou a lembrar-me. Ainda tens essa roca, velha e querida amiga?
– Rais-ta parta! Desfez-se à segunda vez que tentei carregá-la…
– Não digas mais, Cassada. Já sei quem me rogou as pragas.
– Quem?
– As velhas que me compraram as rocas…
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 43 e s.)

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