quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O QUEBRA-NOZES

Há dias um familiar perguntou-me:
– Que queres de prenda de Natal?
– Um quebra-nozes para pinhões.
– Não sei o que é.
– Nem eu.
– Mau.
– Não te zangues. Eu explico.
Na minha infância aldeã não havia Árvores de Natal, sapatinhos na chaminé, ou coisas dessas de gente citadina.
A única prenda com que nós, os miúdos, podíamos contar, eram os pinhões.
Uma pinha por cabeça ou, em tempos de mais carestia, uma para dois, que nós éramos oito.
Um ano por outro, avezávamos um suprimento trazido pela tia Albertina, irmã de minha mãe, casada em Fírvidas, onde, ao tempo, havia o único pinheiro manso das sete léguas em redor.
E era um ver quem mais se aviava a esquentar a pinha ao lume, a virá-la dum lado e doutro, à espera que ela se risse e mostrasse os dentes, que nós lhe íamos extraindo e dispondo em eirado, na pedra do lar.
– Quantos pares rendeu a tua?
– Setenta e cinco!
– A minha, oitenta e três!
Debulha feita, começava a jogatina. O método mais vulgar era o par ou pernão. Estou a lembrar-me da história dum garoto que, bolso cheio de pinhões, saiu para a rua à procura de adversário. Apareceu-lhe um gargajola bastante mais velho que o desafiou para o par ou pernão. Mas o garoto ainda nem sequer sabia contar. Perguntava: «Para o par ou pernão?». O outro respondia par. Ele mostrava. Era ímpar. Mas o gargajola dizia: Par. Bota cá. Agora sou eu a perguntar. Par ou penão? O garoto respondia: par. Estava certo. Mas o gargajola enganava-o: pernão. Bota cá. Em breve o garoto estava sem pinhões. Foi para casa choramingar. A mãe deu-lhe outra pinha. Ele debulhou-a e desceu de novo à rua. O gargajola acorreu:
– Vamos jogar?
– Está bem. Mas ao bota cá, bota cá, não quero!
Além do par ou pernão, havia o rapa e o arrebindai-ma. O rapa, toda a gente sabe o que é. Arrebindai-ma, nem todos saberão.
Era assim. O primeiro jogador ocultava um certo número de pinhões entre a mão aberta e uma tábua e dizia:
Arrebindai-ma?
O segundo replicava:
Abri a mão e dai-ma.
Num gesto rápido, o primeiro levantava um pouco a mão e escondia de novo. O segundo tinha de adivinhar quantos pares eram. Se errasse, repunha a diferença.
Passei noites inteiras a disputar o arrebindai-ma com um meu vizinho e colega de instrução primária, mestre em trapaças.
Num dia em que estava a perder, ele colocou, num arreganho de vingança, todos os pinhões que tinha em cima do escano, cobriu-os com as mãos ambas e disse:
– Arrebindai-ma?
– Abri a mão e dai-ma!
Ele mexeu apenas os dedos.
– Cento e quarenta e quatro pares – disse eu.
Uma das trapaças mais frequentes do meu parceiro consistia em esconder um ou dois pinhões entre as pregas dos dedos e retê-los ou deixá-los cair conforme lhe conviesse.
Exige-lhe que mostrasse as mãos a ver se estavam limpas.
– Podes contar.
Ele começou a contagem, vagarosamente, sempre melúrias.
Ao aproximar-se dos cento e quarenta, apercebeu-se de que eu tinha acertado e perdeu a cor:
– Estou que me enganei. Volto atrás.
E, sub-repticiamente, com o cotovelo, ia rolando os pinhões para a borda do escano. Mas eu estava atento:
– Não sejas batoteiro!
– Batoteiro, eu?
– Julgas que eu não vejo? Apanha os pinhões, não te faças andrezo.
Havia uns quatro no chão.
– Oh! Estes não faziam parte da jogada…
– Faziam, que eu bem os ouvi cair.
– Estás maluquinho.
– Nunca estive tão fino. Conta direito.
A disputa foi renhida. Mas os cento e oitenta e oito pinhões vieram comigo.
Não é por me gabar, mas cheguei a ser imbatível na arrebindai-ma? De modo que, finda a safra, ficava sempre de saco cheio. E só me restavam duas saídas: guardá-los ou comê-los.
Nada fácil, quebrar um pinhão. Um dia, irritado com um mais refractário ao golpe duma pedra, fui-me a ele com um martelo. O lafrau furtou-se e eu esborrachei a cabeça do indicador esquerdo.
Quando me viu a escaincar, o tio António, irmão e afilhado do meu pai, fingiu-se muito condoído e consolou-me:
– Deixa estar, que hei-de trazer-te da feira um quebra-nozes para pinhões.
E eu fiquei à espera.
De vez em quando lembrava-lhe:
– Ó tio? O meu quebra-nozes para pinhões?
– Já o encomendei a um ourives de Chaves. Mas aquilo é objecto de muita obra e feitio. Aguarda.
E eu especulava para comigo: encomendado a um ourives? Então deve ser de prata… Ou de ouro?
Mas a encomenda nunca mais chegou.
Anda por aí uma peça de teatro em que dois indivíduos passam a vida «À Espera de Godot».
Eu passei a minha à espera dum quebra-nozes para pinhões.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 40 e ss.)

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