domingo, 5 de agosto de 2012

Dia 5 [Agosto de 2009]

Almodóvar
Cheguei tarde à «movida», quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rímel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e a sua tristeza. Não quero dizer que as «movidas» sejam tristes por definição, o que digo é que têm de se esforçar muito para não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: «Que faço eu aqui?» Atenção, estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para «movidas» e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da «movida» madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): «Que faço eu aqui?» A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi Volver enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: «Tocaste a beleza absoluta». Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.
Devo concluir. De uma forma decerto inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da «movida».
José Saramago, O CADERNO

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