sábado, 4 de agosto de 2012

Dia 4 [Agosto de 2009]

Pátio do Padeiro
Creio que foram doze anos o tempo que vivi na Penha de França, primeiro na Rua do Padre Sena Freitas, depois na Rua Carlos Ribeiro. Durante muitos mais, porém, até ao falecimento de minha mãe, o bairro foi para mim um prolongamento constante de todos os outros lugares onde depois morei. Dele tenho recordações que permaneceram vivas até hoje. Então ainda o Vale Escuro fazia honra ao seu nome, era um espaço de aventura e descobrimento para os rapazes, um resto de natureza que as primeiras construções já começavam a ameaçar, mas onde era possível saborear o gosto ácido das azedas e os tubérculos adocicados das raízes de uma planta cujo nome nunca cheguei a conhecer. E era também o campo de batalha de homéricas púrrias… E havia o Pátio do Padeiro (que não pertencia à Penha de França, mas ao Alto de S. João…), onde a gente «normal» não se atrevia a entrar e que, segundo se dizia, a própria polícia evitava, fazendo vista gorda aos supostos ou autênticos comportamentos ilícitos dos seus habitantes. O mais certo é que tanta desconfiança e temor fossem também causados pelo encerramento em si próprio daquele pequeno mundo que vivia segregado do resto do bairro e cujas palavras, gestos e atitudes chocavam com o pacato ramerrame da gente assustadiça que passava de largo. Um dia, quase da manhã para a noite, o Pátio do Padeiro desapareceu, talvez arrasado pelo camartelo municipal, mais provavelmente pelas escavadoras das empresas construtoras, e no seu lugar foram levantados prédios sem imaginação, copiados uns dos outros e que em poucos anos envelheceram. O Pátio do Padeiro, ao menos, tinha a sua originalidade, a sua fisionomia própria, embora suja e mal cheirosa. Se eu pudesse, se tivesse a coragem de partilhar a vida daquelas pessoas para informar-me, gostaria de reconstituir a vida do Pátio do Padeiro. Penas perdidas seriam. A gente que ali vivia dispersou-se, os seus descendentes, se se lhes melhorou a vida, ou esqueceram ou não quereriam recordar a dura existência dos que viveram antes. Na memória da Penha de França (ou do Alto de S. João) não se guardou um espaço para o Pátio do Padeiro. Há pessoas que nasceram e viveram sem sorte. Delas não ficou nem sequer a pedra da soleira da porta. Morreram e passaram.
José Saramago, O CADERNO

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