sexta-feira, 16 de setembro de 2011

VARANDAS DO ZÊZERE


Há um mês que não vinha a Peireses. Julguei que ninguém dava pela minha falta. Pois enganei-me. Primeiro, uma gata a quem costumo brindar com umas aparas do talho, mal me viu, começou a destilar ternura dos olhos:
– Ingrato! Eu para aqui perdida de amores por ele, e este vadio deixa passar um mês sem me visitar...
– Os teus males de amor sei eu quais são e o remédio que têm. Chega-te para lá, se não ainda levas algum pontapé que passo contigo aos astros...
A tinhosa da gata, enquanto lhe não encher o fole, não me larga. Se estou parado roça-se-me nas pernas, se ando, mete-se-me à frente dos pés. Uma chata de todos os tamanhos. Só há um processo de me ver livre dela. É atirar-lhe um bom naco de carne. Nem sei como ainda a aturo.
– És de bom tempo...
Levanto a cabeça e vejo a poupa empoleirada no telhado, de asa encolhida e bico murcho.
– Olá vizinha? Que modos são esses? Desgosto ou apenas cansaço?
– Cansaço, rapaz. Os filhos não me dão um momento de folga. Sempre de goelas abertas, a reclamar o cibato. E como tem chovido e os insectos rareado, vejo-me perdida para os calar. Estava mesmo agora a passar pelas brasas enquanto eles dormem a sesta. Mas diz-me cá: a que se deve tão prolongada e estranha ausência?
– Compromissos, Princesa, compromissos. Compromissos incontornáveis, como agora dizem os nossos políticos e os nossos articulistas. Dias de anos de pessoas de família, um seminário dito científico, donde saí a saber menos do que quando lá entrei, a reunião anual dos colegas de curso.
– E onde reunistes?
– «Varandas do Zézere».
– o Zézere não é um rio?
– Pois é.
– E os rios têm varandas?
– «Varandas do Zézere» é um simpático hotel sobranceiro à «Barragem do Cabril».
– Barragem do Cabril? Nunca tinha ouvido falar. Por acaso não teria sido de lá que o célebre Cabrilho partiu à descoberta das costas da Califórnia?
– Ó Princesa! Não brinques. Cabril é uma pequena albufeira a quem a nossa dos Pisões, se a encontrasse, era bem capaz de lhe fazer o que a baleia fez a Jónatas: engolia-a dum trago...
– E que mais viste tu?
– A Sertá.
– Para fritar os peixes da barragem?
– Sertã é uma vila, Princesa.
– Quem mora numa sertã deve estar frito.
Frito estou eu com as tuas ironias.
– Desculpa e continua.
– Entre a Sertil e Vila de Rei subimos a um cabeço, ou marco geodésico, com os seus 800 metros de altitude e umas vistas deslumbrantes. Para onde quer que um homem se volte tem à frente dos olhos uma vastidão de horizontes que se confundem com o azul cinzento do céu ou do infinito. Dizem que é o «Centro de Portugal»...
– «Centro de Portugal»? Ó vizinho: que eu saiba, Portugal não é uma circunferência?
– Nunca tinha pensado nisso.
– Então pensa um pouco melhor e depois diz-me como é que se determina o centro dum quadrilátero. E não me venhas para cá falar de marcos grodésicos com 800 metros de altitude, quando eu tenho aqui a um golpe de asa o do Larouco a 1500. Isso nem parece teu...
– Desculpa, Princesa.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 172 e s.)

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