domingo, 4 de setembro de 2011

DIA DE NAMORADOS


No dia 14 do corrente, uma sexta-feira, estive vai-não-vai para meter-me no carro e passar a Peireses. Reconsiderando, optei por ficar. Isto por várias razões, duas das quais, pelo seu peso e importância, merecem registo.
Primeira: era Dia de Namorados e eu não queria passá-lo longe da minha. Ainda pensei em ir e enviar-lhe de lá, por correio azul, em sinal de que me não tinha esquecido do dia nem dela, uma cartinha apaixonada com um coração varado por uma setra.
Mas os tempos mudam e hoje, suponho, já ninguém escreve à mulher amada cartinhas de amor timbradas por corações varados por setras. Há as mensagens pelo telemóvel, pelo e-mail e outros requintes de tecnologia dos quais eu, velho caturra, pouco ou nada percebo. Resolvi, portanto, ficar junto da minha amada e oferecer-lhe, simbolicamente, uma rosa encarnada.
Segunda razão: tendo eu perguntado, pelo telefone, como ia por lá o tempo, me responderam:
– De obrija ovelha...
Que é o máximo que se pode dizer.
Chamavam-se de «obrija ovelha» àqueles dias de água-neve, frigidíssimos, em que as ovelhas mais velhas ficavam de tal maneira «obrijadas» ou entanguidas que perdiam o andar e o contacto com o rebanho. Encostavam-se às paredes e pata ali ficavam resignadas a entregar a alma ao criador e os ossos ao lobo. Os pastores é que se não resignavam a perder o richelo. Uma ovelha, por mais escanzelada que passasse o Inverno, se conseguisse chegar à Primavera, com sol no céu e mesa farta na terra, sempre ganhava umas febras de modo a poder, sem vergonha do dono, ser morta e servida à mesa em dias de trabalho colectivo, verbi gratia: ceifa, malhada, recolha de feno, apanha de batatas. Era aquilo a que se chamava «carne esfoladia» e prato muito apreciado nos trabalhos do Verão. Por isso, quando as ovelhas obrijavam, os pastores botavam-nas às costas e traziam-nas para a corte.
Andei com algumas ovelhas obrijadas ao lombo e, ao contrário dum madrigal às «Meninas do Vale do Sado», agora muito em moda, nunca «tive carrapatos atrás das orelhas»...
Desgraçadamente, os baldios de Peireses desapareceram e, com eles, os rebanhos e os pastores. Mas os «dias de obrija ovelha» continuam. Por isso me não aventurei. E como tivesse ficado metido em casa, li algumas coisas a respeito do Dia dos Namorados ou Dia de S. Valentim.
A maioria dos historiadores fala de dois Valentins, ambos mártires e ambos do século III da nossa era. Um deles era bispo e foi parar à cadeia donde saiu a caminho do martírio. Antes de sair, porém, teve artes de fazer chegar às mãos da filha do carcereiro, por quem se tinha apaixonado, uma cartinha de amor e despedida. Outro era um simples presbítero que desobedeceu ao imperador. Este, um tal Claudius II, proibiu os casamentos para evitar que os rapazes não quisessem ir ou desertassem do exército. Compadecido dos jovens apaixonados o presbítero Valentim casava-os em segredo. Sabedor do caso, o imperador mandou-o matar.
A memória dos dois Valemins celebra-se a 14 de Fevereiro. Daí a conotação do Dia de S. Valenltm com o Dia dos Namorados.
Esta a versão dos historiadores católicos. Depois vem a dos ateus. Dizem eles que a instituição do Dia de S. Valentim como o Dia dos Namorados não passou duma manobra da igreja católica para cristianizar as Lupercalia, festas pagãs em honra de Juno, rainha dos deuses e protectora das mulheres, durante as quais um jovem tinha de escolher um parceiro de sexo oposto para ver o que aquilo dava, o que facilmente se adivinha. No fundo, uma festa da fertilidade para celebrar o início da Primavera, a qual, entre os romanos, principiava a 15 de Fevereiro.
Considerando o empenho, para não dizer fúria, da igreja católica em varrer da face da terra tudo o que cheirasse a paganismo, esta versão é, para mim, a mais verosímil. Mas, de modo algum, a mais simpática. Essa deixei-a para o fim. Diz ela que a razão de associar o dia 14 de Fevereiro ao Dia dos Namorados, provém do facto de ser, por essa altura, que os pássaros machos começam à procura de fêmea para acasalar.
Como fui sempre um perdido por ninhos, ontem, dia 28, igualmente sexta-feira, mau grado o tempo continuar de «obrija ovelha», vim por aí acima. Fiz uma viagem tormentosa, sempre debaixo de água e nevoeiro e vim encontrar a casa transformada num frigorífico, ou «frisa», como dizem os meus vizinhos que estão ou estiveram na América. Não «obrijei», porque ainda tive forças para acender a lareira, ligar o aquecimento no quarto e, com o adjutório dum saco de água quente, dormi um sono de justo. Acordei com a alegria duma réstea de sol nos olhos. Equipei-me a preceito e saí para os campos.
Desde a minha infância passarinheira que sou capaz de, pelo canto dos pássaros lhes adivinhar toda a vida amorosa.
E como sei também que, em Barroso, os tordos são dos primeiros a nidificar e o fazem, de preferência, nos carvalhos, por volta do meio dia lá estava eu numa touça, sentado num cepo, nariz ao alto, à procura de qualquer coisa que se parecesse com um ninho, quando descubro, ali a dois ou três metros, um corvo empoleirado num galho seco e a olhar para mim com cara de caso. Interpelei-o:
– Conheces-me dalgum lado?
– Desde que nasceste.
– Estás a reinar comigo?
– Podes crer. Quando tu vieste a este mundo já eu por cá andava há uns bons trinta anos.
– Pois olha que estás bem conservado...
– Um corvo aos cem anos está no melhor da vida. Mas não era disso que eu te queria falar.
– De que era então?
– Dum meu antepassado que foi grande amigo de S. Bento a quem chegou a salvar a vida.
– Eu sei. Ou ignoras que também fui beneditino?
– Bem me enganaste.
– Porquê?
– Podias ter ido viver para uma gruta, levares-me contigo, chegares a santo, subirmos ambos aos altares.
– Ainda estamos a tempo.
– Tarde demais.
– Porquê?
– Depois de velho ficaste com fracas ventas para santo.
– Deixo crescer a barba e fico outro.
– A barba não faz o monge. Mas basta de conversa fiada. Quando é que te resolves a mandar pintar o S. Bentinho da Capela?
– Eu?!
– Não me digas que não sabes que o S. Bentinho da Capela foi lá mandado colocar por um teu avoengo de nome Bento Marinheiro, e que, desde então, todos os primogénitos da família lhe herdaram o nome e a obrigação de zelar pela imagem. Da minha lembrança, era Bento o teu bisavô, o teu avô, o teu padrinho e agora tu que és a vergonha de todos porque tens a imagem do Santo Patriarca e do meu ilustre antepassado numa lástima.
– Olha que não linha reparado nisso...
– Então repara. Todas as imagens da Capela foram pintadas de novo, menos o S. Bento, o qual, se me não engano, até foi relegado para a peanha mais pequena e mal acabada do altar. Quanto à mudança de poiso, ainda te desculpo. Agora que deixes a imagem do Santo e do Corvo de cara suja e roupa velha junto de meia dúzia de colegas todos de cara pintada e roupinha nova, não te perdoo.
Regressei a casa a pensar naquilo. E agora aqui estou eu com uma dúvida: não sei se vi realmente o corvo ou se o sonhei. Pelo sim, pelo não, e em descargo da minha consciência, vou entender-me com o senhor abade.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 162 e ss.)

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