segunda-feira, 26 de setembro de 2011

LUÍS DE CAMÕES E OS ROUXINÓIS


Hoje, 10 de Junho, dia de Portugal e das Comunidades, levantei-me com o sol e saí para os campos a pensar em Luís de Camões. Há quantos anos teria morrido? Pus-me a fazer contas pelos dedos, método outrora aprendido com mestre Saias e ainda hoje infalível. Quatrocentos e tal anos. Há quatrocentos e muitos anos que o imortal cantor dos Lusíadas morreu miseravelmente num miserável catre de misericórdia e foi a enterrar envolto num lençol cedido por esmola. Hoje ninguém sabe onde lhe param os ossos.
Mas todos sabem onde lhe pára a obra. Todos sabem que ele é, de longe, o) maior poeta de Portugal e um dos maiores do mundo. O que ninguém saberá é que Luís de Camões sempre foi o meu poeta predilecto e aquele de quem mais poesias sei de cor.
E para provar a mim mesmo que ainda estou em forma, recitei, calhelha fora, o soneto «Aquela triste e leda madrugada» e as redondilhas «Sobolos rios que vão».
O soneto fala-nos de coitas de amor a que eu, com o decorrer dos anos, fui ficando imunizado, mas de modo algum insensível.
As redondilhas, da renúncia aos prazeres deste mundo com vista a alcançar a bem-aventurança no outro.
Neste ponto, que Luís de Camões me perdoe, mas não estou muito de acordo. Ele era um homem culto e, decerto, sabia o que dizia. Mas eu não passo dum campónio que, apesar da idade, ainda aprecio as coisas boas desta vida. Não todas, evidentemente, mas as que me restam e às quais ainda não estou disposto a renunciar. Esta «leda madrugada», esta aragem, este perfume, esta deliciosa sinfonia dos pássaros no silêncio dos campos. Os tentilhões, as rolas, os pombos bravos, as codornizes, os cucos, as poupas, as andorinhas, os pardais, as calhandras, os melros, os rouxinóis.
«Tale! Lá está um» – disse para comigo. E avancei, pé ante pé, para o tronco dum castanheiro, donde me parecia vir o canto. Ali estive, de nariz no ar e olhos arregalados, um ror de tempo. Por fim lá descortinei o pequeno cantor empoleirado num raminho da copa da árvore, mesmo por cima da minha cabeça. Quedei imóvel, respiração suspensa, literalmente embebido naquela suave melodia, a perguntar a mim mesmo como é que um pássaro tão pequeno podia cantar tão bem.
Ainda eu não acabara de formular a pergunta, já ele levantava voo. Temi que fosse para longe. Mas não. Apenas mudou de árvore. Aproximei-me para ouvir de mais perto.
De repente, lembrei-me daquela história de Manuel Bernardes que reza assim:
«Estando um monge em matinas com os outros religiosos do seu mosteiro, quando chegaram àquilo do salmo onde se diz «que mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem que já passou», admirou-se grandemente e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume, e pediu afectuosamente a nosso Senhor se servisse de lhe dar a inteligência daquele verso.
Apareceu-lhe ali no coro um passarinho, que, cantando suavissimamente, andava diante dele, dando voltas duma para outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o monge julgava) tomou voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia, mui sentido:
– Ó passarinho da minha alma, para onde te foste tão depressa?
Como o passarinho não voltasse, voltou o monge para o mosteiro, onde ninguém o reconheceu. Havia passado trezentos anos enlevado no breve gorjeio do passarinho...»
«Olha que espiga! E se a mim me aconteceu o mesmo?»
Corri para casa.
Afinal continuava tudo na mesma.
Todos os vizinhos que encontrei me reconheceram.
Pardeus! Que alívio...
VIVA LUÍS DE CAMÕES!


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 174 e ss.)

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