sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O CARANCHO


Até há bem pouco tempo, a rua onde moro devia ser das mais sossegadas e bucólicas do Porto. Tinha pouco movimento e, mesmo por debaixo das janelas das traseiras, pastavam vacas.
Anos depois, expulsaram as vacas e fizeram dois campos de treino. Já não era a mesma coisa, mas, ainda assim, o enquadramento dos relvados e das árvores que lhes plantaram à volta, mantinham, quase intacto, aquele ar campestre que tão bem faz à vista e ao espírito.
De repente, há uns dois anos, apareceram uns monstros de ferro e aço, decerto concebidos e executados no Inferno, e viraram tudo com o de baixo para cima. Os campos de treino ficaram no osso. Mas nem esse escapou. Foram-se a ele a tiros de dinamite.
Durante meses, dia e noite, comboios ininterruptos de grandes camiões carregados de entulho, provocavam terramotos na rua.
Diariamente, durante as pegas de fogo, a casa estremecia, os cristais desfaziam-se uns de encontro aos outros nas prateleiras, os vidros das janelas e os azulejos dos quartos de banho estalavam, as paredes abriam fendas de alto a baixo. Um pavoroso filme de terror.
Comecei a ter pesadelos.
O desta noite foi de morrer. Sonhei que os monstros estavam a fazer à Praça e à Avenida da liberdade, o mesmo que fizeram à zona envolvente do Estádio das Antas. A estátua de D. Pedro IV, a Ninfa, o Almeida Garrett, as árvores, os edifícios, tudo de patas para o ar.
Fiquei tão impressionado que, mal acordei, vesti-me à pressa e fui até à Praça. Felizmente ainda lá está. E com ela, as recordações da minha juventude.
Quando vinha ao Porto, o meu falecido tio José instalava-se na pensão Avenida, ali à entrada da Rua Sampaio Bruno, onde hoje está um banco.
Eu, na altura estudante, acorria a pedir-lhe a bênção. Com a bênção vinham uns cobres e uns bifes de boi bem regados a maduro tinto pelas tascas da Travessa do Bonjardim. Eu gostava daquilo.
Um dia o meu tio apareceu acompanhado por um vizinho, o Domingos do Fecha, em Peireses conhecido pelo Carancho. Vinham ambos em negócio de batata que, naquele ano, não tivera grande saída.
Foram cada qual por seu lado e combinaram encontrar-se ao meio-dia no Imperial, um dos cafés mais emblemáticos do Porto de antanho.
Estava eu e o meu tio comodamente sentados à mesa a saborear a bica, grande estardalhaço à porta. Toda a minha gente voltou a cabeça. E, no silêncio que se gerou, ouviu-se nitidamente o grito de guerra do Fecha.
– Carancho!
Meu tio levantou-se de golpe e correu à porta. Eu segui-o. O Fecha arremetia com o porteiro:
– Carancho! Julgas que sou algum berdamerda ou quê? Não trago gravata, mas trago aqui dezoito contos no bolso.
Meu tio, perdido de riso, passou o braço pelos ombros do Fecha:
– Está calado que ainda te roubam... Vamos embora. Para que diabo andas tu com dezoito contos no bolso? Se quiseres entrar, vamos comprar uma gravata, que, por melhor que seja, não te custará mais de cinco mil réis...
– Que gravata, que nada, Carancho! Não sou nenhum cão de coleira...
Enfatuados tempos em que se não podia entrar no Imperial sem gravata.
Hoje até de tronco nu se lá entra.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 166 e s.)

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