Tenho as recordações da minha infância
catalogadas por meses.
Agosto é o das malhadas.
Não cheguei
a tomar o gosto
ao malho. Quando
principiava
a endireitar-me
com ele, tentou-me
o diabo para deixar a aldeia. Fiz bem? Fiz mal? O diabo
que responda, que eu não sei. Enquanto
aguardo resposta, vou vivendo de recordações, de preferência
alegres. Hoje tenho
uma relacionada
com as malhadas.
As malhadas
eram trabalhos de entreajuda. Hoje malhas
para mim, amanhã
malho para ti.
Aí com dois dedos de sol-nado
acima da linha
do horizonte, o
dono da messe subia à meda e gritava, a
plenos pulmões: «À ei...
ei... ei... ei... ra,
a, al!» Aqui tomava fôlego
à laia de tenor
de ópera e concluía: «Que já está o vinho
no pipo e a cabra
na caldeira!»
Esta da «cabra na caldeira»
não era flor de
retórica nem exigência de rima. Fraca
a malhada que não
metesse um ou
dois richelos
cozidos. «Carne esfoladia»,
como lhe chamavam.
Quanto a vinho, nem é bom falar.
Bebiam como vacas no carrejo. Que isto
de lidar com as palhas,
faz uma sede danada.
Durante o dia não, por
causa dos desastres.
Mas à noite,
vizinhos havia que gostavam de ver tudo bêbado. Dava
nome à casa. «Em casa
de fulano é que foi beber! Vinho com açúcar, cerveja,
laranjada,
café, bagaço,
rebuçados para as mulheres, cigarros
para os homens. Não
faltou ali nada.»
No último
eirado, «prendia-se»[1]
o patrão e disputava-se a «anha»[2].
Noite dentro, namorava-se
a coberto das medas de palha e das rimas de colmos.
Nós, os pastores,
gostávamos daquilo. Metíamos o gado às
cortes e, em vez de irmos
para a rua correr o rou-rou, íamos
para as eiras fazer que ajudávamos. Mas
o que nós queríamos era brincadeira.
Um dia fomos para o ti
Chamorro.
O ti Chamorro
tinha mulher
e três filhas. A mais nova estava connosco
na eira. As duas mais velhas
e a mãe, na cozinha a tratarem dos potes.
Quando lhe
pareceram horas, o ti Chamorro ordenou à mais nova:
– Vai
dizer à tua mãe e irmãs que me tragam um lampião
e apertem com a ceia.
A cachopa foi e voltou a correr,
muito aflita:
– Ó pai? Ó pai?
– Ele
que foi, rapariga?
– Elas...
Tinham-se
embebedado e estavam a dormir cada qual
para seu canto...
O ti Chamorro correu em direcção
à cozinha, decerto no bom
intento
de acordar mulher e filhas
a pontapé. Nisto, surde a tia
Chamorra ao cimo das escadas de lampião aceso em punho.
Tropeça numa palha e vem
por ali abaixo aos trambolhões
ao longo de vinte e tal degraus de pedra. Acode o ti Chamorro de braços
estendidos:
– Ou nabo! Ou nabo, que
lá me partes o lampião...
Naquela noite e dias seguintes, muito nos rimos:
«Ou nabo! Ou nabo que lá me partes o lampião...»
Quem não achou graça nenhuma foi a tia Chamorra a qual além do
lampião, partiu um braço e não sei quantas costelas...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS
II – Crónicas de Barroso (p. 104 e
ss.)
[1] Segundo
a praxe, ao findar o último
eirado, o patrão
tinha de ter
vinho pronto na eira. Se
o não tivesse
(por vezes escondiam-lho) «prendia-se».
Consistia
a pantomina em
deitá-lo no panal
(um lençol encabado
num pau com que se evitava
que o grão, ao saltar
dos malhos,
fosse para
longe) e dar
com ele
uma volta à
eira, em
grande algazarra, uns
a acusar, outros
a defender.
Coisas de gente
bem disposta.
[2] Como toda a
gente sabe, os malhadores
malhavam em duas alas,
frente a frente.
No fim do dia
desafiavam-se
a ver qual delas
arrancava
maior estrondo
na eira. Os vencidos
«ficavam com
a anha». É provável
que, noutros
tempos, houvesse
mesmo uma
anha, ou ovelha,
em disputa. No
meu tempo
havia
apenas um manipanso
de palha a simbolizar
a derrota.
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