Hoje é dia não.
Sinto-o logo ao acordar, na perturbação nervosa que me põe doido de mal-estar
angustiado. E estou sem ter que fazer. E sinto que a Regina se altera de um
modo alarmante. Decisões bruscas, inesperadas. Desajustamentos. Faltas de
memória. Irritações longas.
Entretanto leio os livrinhos da rapariga
que conheci na homenagem ao Rosa. Livros esquisitos. Amontoado insólito de
detritos, coisas desconexas. Toda a obra exige uma óptica para ser lida. Vista
numa óptica desajustada, quase tudo fica de fora nas zonas da cegueira.
Aplico-me à leitura e tudo me foge ou desaparece na minha desatenção.
Entretanto ainda, há sol. Está mesmo
quente. Fui buscar o jornal com os agasalhos do costume e tive calor. Ao meu
olhar desatento, reparei hoje que há muito não vejo a farrapeira. Via-a todos
os dias transportando uma fila enorme de mercadoria, que eram sacos de cartão,
lixo apanhado decerto nos caixotes das portas. Não podendo logo com a carga
toda, ia-se deslocando às porções pela avenida abaixo até ao poiso do seu comércio.
Terá morrido? Terá ido comerciar para o paraíso? De vez em quando é assim – um
elemento do meu quotidiano desaparece do meu convívio.
Estou cansado. Revoluteado nos nervos.
Fico aqui.
*
O Listopad telefonou-me (o Lúcio
atendeu) a dizer-me que publicara ontem no Notícias
um artigo sobre a morte das ideologias que me era dedicado, tendo sido a dedicatória
cortada pelo jornal. É o que se chama a liberdade de imprensa. Porque essa tão
falada e exigida liberdade é a dos senhores dos jornais cortarem,
acrescentarem, enxovalharem e se for possível difamarem quem lhes não cai no
goto. A outra, a liberdade de imprensa do Estado, ou seja a de quem está no
(outro) poder, tem o nome infame de ditadura, prepotência, censura, monopólio
da informação e outros nomes execráveis. Ora a liberdade de imprensa é só a
liberdade de os senhores jornalistas dizerem o que lhes vai a peito e dá na
gana. E quando alguém humildemente reponta contra esta (nova) prepotência, suas
excelências enrouquecem a protestar contra os que lhes negam o direito de informarem, ou seja de informarem
o que lhes apetece. Porque é que os mandões do Notícias cortaram o meu nome numa singela dedicatória? Ora. Por
falta de espaço, por descuido, por se não ver a necessidade dela, por. Mas
seria interessante saber-se que antes
disso houve a minha recusa, por
motivos de saúde, de ser instrumentalizado, no nome «do prestígio», para fazer
parte do júri do Prémio a que o jornal dá o nome e o bago. Simples, não é? Mas
vá lá alguém dizer-lhes isso, que o queimam logo em efígie.
Mas o artigo. Listopad está de acordo
com o que eu disse e já antes tinha dito num ensaio publicado no Comércio do Porto e incluído no Espaço do Invisível-II. Com a pequenina
diferença de que para mim as ideologias se não impõem, se não criam à força,
mas dimanam necessariamente do estado de coisas do Mundo. Os valores têm de nascer, porque o homem é de sua
natureza um ser de projectos. Mas não se projecta o que nos dá na real gana e é
antes, não uma causa de se valorizar, mas um efeito disso. Por enquanto não
temos nada a promover a «valor». Mas havemos de ter, sem sabermos que os vamos
ter, antes de já os termos. O mito orienta-nos depois de o ser. Mas antes, no
irmos sendo, o mito mitifica-se. E é do que estamos à espera. E a História
connosco.
*
A luz, a luz. Ela já me deslumbra o
escritório e acende os livros das estantes até às sombras que houver neles. E
eu sou contente com a verdade de uma criança, que é não ser no que é, que é ser
fora de si. A luz. A alegria. A vertigem da criação. O incêndio de Deus.
VF
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