domingo, 2 de dezembro de 2012

É PROIBIDO APONTAR


Domingo de manhã… À mesa do café quase deserto, o sujeito – lunetas de prudente funcionário da Fazenda – conversa com a menina, sete anos pálidos e tímidos. Tirante o caminho monótono da escola particular para ambos os sexos onde definha, aí num triste primeiro andar ao Bairro Camões, a menina goza apenas, vê-se à primeira vista, do privilégio de um passeio hebdomadário à Baixa. Observo-os do meu recanto pouco confortável (estas cadeiras de pau!), e posso imaginar o interior duma existência modesta, que se aguenta à custa de alfinetes em todas as costuras.
Conversam. E nisto a menina aponta para fora, para a estátua do Libertador, para o sol distante, as pombas da praça, talvez para uma janela onde qualquer coisa lhe atraiu a atenção: e a mão lívida, burocrática, pergaminácea do cidadão-papá estende-se num jeito de polvo a abaixar severamente o dedinho indiscreto. É proibido apontar!
O funcionário olha em redor, através das lunetas desconfiadas de azul, não tenha alguém reparado no gesto da filha (ou no dele?).
Era eu pequeno, para reprimirem em mim uma espontânea e justiceira tendência acusadora, o desejo de inquirir sem reservas, apontando, ensinaram-me que em certa igreja, ao erguer o dedo para um santo em seu nicho, ficara um homem com a mão sacrílega cortada resvés. Apontar é pecado, é tabu!
Até que ponto terá esta proibição geral destruído em mim as curiosidades naturais, o desejo de saber de fonte directa, e de acusar sem rebuço, forçando-me a uma atitude hipócrita de indiferença? Os meus dedos ficaram para sempre anquilosados, perderam a agilidade necessária para trespassar indiscretamente as pessoas e os factos que a minha consciência interroga ou condena. E no entanto, o homem que aponta assume a responsabilidade do seu gesto: porque há sempre na sombra da noite que nos envolve um cutelo pronto a cortar, como ao outro no templo, a mão que se ergue a inquirir, a acusar, a denunciar.
É de crer que a madre Eva tenha tentado Adão apontando-lhe candidamente os proibidos pomos da árvore da Sabedoria. Apontar um deus é destruí-lo. Os Hebreus não podem sequer erguer os olhos para o santo-dos-santos, não podem apontá-lo nem a olho. Apontar é um gesto revolucionário. Foi também apontando que Judas Iscariotes mostrou o Cristo, na noite mais que todas amarga, para o denunciar. No entanto, esse gesto, que valeu a morte e, na boa vontade de alguns simples, a ressurreição dum santo homem transbordante de imagens parabólicas e herméticas, foi o início de uma revolução nas ideias morais e religiosas, e recaiu sobre o próprio Judas, que se enforcou. E nós temos de aceitar esta conclusão cruel: o homem que anuncia a Verdade, melhor e mais concisamente do que o fizera o Baptista, e a aponta com o seu dedo adunco e sujo de pobre sem eira nem beira, sequioso de alguns dinheiros; o homem que propõe ao mundo, com o espectáculo de uma vulgar traição, o seu Deus mais humano e popular – paga com língua de palmo, numa figueira, a coragem de ter paraninfado a nascença da divindade! Judas apontou e pagou caro o seu gesto criador. O mundo continua povoado de símbolos e de contradições.
Os papás costumam punir os meninos que, à mesa, quando se pergunta: «Quem comeu a compota que estava na despensa?» – respondem vigorosamente, virando o dedinho rosado e severo sobre o culpado: «Foi o Nené!»
Como é sabido, só nos grandes apertos, ou sonhando em voz alta, os culpados dizem suas culpas; ou quando lhes convém, por exemplo para salvar a alma pela absolvição. De modo que, com os dedinhos contraídos e as orelhas ainda rubras da memória de algum remoto puxão, os meninos feitos homens, mesmo sendo altas coisas neste mundo, nunca mais se atrevem a dizer «Foi o Nené!», quando, nas assembleias, consistórios, conselhos, tribunais, comandos ou parlamentos, alguém se ergue indignado a indagar quem foi que comeu a compota que estava guardada na despensa do cofre ou do orçamento.
De resto, o silêncio, se nem sempre é de oiro, é pelo menos de papel-moeda ou títulos cotados. E quem o guarda não corre o perigo de ficar sem dedo – ou sem anéis, que importam mais.
 (Seara Nova, 1928) 

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