Domingo de manhã… À mesa do café quase deserto, o sujeito – lunetas
de prudente funcionário da Fazenda – conversa com a menina, sete anos pálidos e
tímidos. Tirante o caminho monótono da escola particular para ambos os sexos onde
definha, aí num triste primeiro andar ao Bairro Camões, a menina goza apenas,
vê-se à primeira vista, do privilégio de um passeio hebdomadário
à Baixa. Observo-os do meu recanto pouco confortável (estas cadeiras de pau!),
e posso imaginar o interior duma existência modesta, que se aguenta à custa de
alfinetes em todas as costuras.
Conversam. E nisto a menina aponta para fora, para a estátua
do Libertador, para o sol distante, as pombas da praça, talvez para uma janela
onde qualquer coisa lhe atraiu a atenção: e a mão lívida, burocrática, pergaminácea
do cidadão-papá estende-se num jeito de polvo a abaixar severamente o dedinho
indiscreto. É proibido apontar!
O funcionário olha em redor, através das lunetas
desconfiadas de azul, não tenha alguém reparado no gesto da filha (ou no
dele?).
Era eu pequeno, para reprimirem em mim uma espontânea e
justiceira tendência acusadora, o desejo de inquirir sem reservas, apontando, ensinaram-me
que em certa igreja, ao erguer o dedo para um santo em seu nicho, ficara um homem
com a mão sacrílega cortada resvés. Apontar é pecado, é tabu!
Até que ponto terá esta proibição geral destruído em mim as
curiosidades naturais, o desejo de saber de fonte directa, e de acusar sem rebuço,
forçando-me a uma atitude hipócrita de indiferença? Os meus dedos ficaram para
sempre anquilosados, perderam a agilidade necessária para trespassar
indiscretamente as pessoas e os factos que a minha consciência interroga ou
condena. E no entanto, o homem que aponta assume a responsabilidade do seu
gesto: porque há sempre na sombra da noite que nos envolve um cutelo pronto a cortar, como ao
outro no templo, a mão que se ergue a inquirir, a acusar, a denunciar.
É de crer que a madre Eva tenha tentado Adão apontando-lhe
candidamente os proibidos pomos da árvore da Sabedoria. Apontar um deus é
destruí-lo. Os Hebreus não
podem sequer erguer os olhos para o santo-dos-santos, não
podem apontá-lo nem a olho. Apontar é um gesto revolucionário. Foi também
apontando que Judas
Iscariotes mostrou o Cristo,
na noite mais que todas amarga, para o denunciar. No entanto, esse gesto, que
valeu a morte e, na boa vontade de alguns simples, a ressurreição dum
santo homem transbordante de imagens parabólicas
e herméticas,
foi o início de uma revolução nas ideias morais e religiosas, e recaiu sobre o
próprio Judas, que se enforcou. E nós temos de aceitar esta conclusão cruel: o homem que
anuncia a Verdade, melhor e
mais concisamente do que o fizera o Baptista, e a aponta
com o seu dedo adunco
e sujo de pobre sem eira nem beira, sequioso de alguns dinheiros; o homem que
propõe ao mundo, com o espectáculo de uma vulgar traição, o seu Deus mais humano e popular – paga
com língua de
palmo, numa figueira, a coragem de ter paraninfado a
nascença da divindade! Judas apontou e pagou caro o seu gesto criador. O mundo continua povoado de
símbolos e de contradições.
Os papás costumam punir os meninos que, à mesa, quando se
pergunta: «Quem comeu a compota
que estava na despensa?» – respondem vigorosamente, virando o dedinho rosado e
severo sobre o culpado: «Foi o Nené!»
Como é sabido, só nos grandes apertos, ou sonhando em voz
alta, os culpados dizem suas culpas; ou quando lhes convém, por exemplo para
salvar a alma pela absolvição.
De modo que, com os dedinhos contraídos e as orelhas ainda rubras da memória
de algum remoto puxão, os meninos feitos homens, mesmo sendo altas coisas neste
mundo, nunca mais se atrevem a dizer «Foi o Nené!», quando, nas assembleias, consistórios,
conselhos, tribunais, comandos ou parlamentos, alguém se ergue indignado a
indagar quem foi que comeu a compota que estava guardada na despensa do cofre ou do
orçamento.
De resto, o silêncio, se nem sempre é de oiro, é pelo menos
de papel-moeda ou títulos cotados. E quem o guarda não corre o perigo de ficar
sem dedo – ou sem anéis, que importam mais.
(Seara
Nova, 1928)
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