Sentado numa pedra e à sombra dum castanheiro, eu saboreava o silêncio da tarde como quem lê um livro ou ouve música.
No meu caso, a música era a dos pássaros.
Um casal de toutinegras que tem o ninho nas traseiras da casa onde moro, mantinha uma acesa discussão doméstica: crés, crés, crés, lés, crés: sublinhando as palavras com acenos de cauda ou pequenos voos dum lado para o outro.
Empoleirada no cocuruto da chaminé, uma carriça ensaiava solos de prima-dona de teatro lírico.
Nunca tinha reparado que a carriça, a bem dizer um passareco irrisório, cantasse tão bem. Ou será esta a Maria Calas das carriças? Assim no alto da chaminé, bem projectado no espaço, o raio do passaroco até parecia ave de maior vulto. E quanto à cantiga, nada mal.
Dum emaranhado de silvas e salgueiros, vinha o improviso dum rouxinol. E esse sim que é um génio. Creio que adormeci ao som do rouxinol.
Acordei com a sensação de que me estavam a bater à porta. Abri os olhos e vi um burro atrás de mim. Era ele que, incomodado por uma vespa, batia as patas no chão.
As toutinegras continuavam a barafustar, a carriça empoleirada na chaminé e o rouxinol a desfazer-se em melodias, sem nunca repetir a mesma nota.
Já um tentilhão que ensaiava a rabeca lá para a macieira, repisava sempre o mesmo estribilho.
Escondidos na copa dum carvalho alvarinho, um gaio amarelo e um melro pareciam pegados numa desgarrada sem fim à vista. O melro, porém, senhor dum assobio mais poderoso e variado, ia levando a melhor.
Enquanto os ouvia, eu pensava: será que os pássaros são dotados por igual de voz e ouvido, ou também entre eles haverá Amálias Rodrigues e Josés Cabras?
Estive para perguntar ao burro. Mas ele pareceu-me tão filósofo e concentrado que eu não tive coragem de o perturbar.
A meus pés, uma planta de folhas verdes, flores azuis e vários caules em círculo e divergentes a partir da raiz comum, era uma orquestra de instrumentos de corda dedilhados por numerosos insectos da família das abelhas, onde sobressaíam moscões amarelos listrados de preto: vam-am, vam-am, vom-om, vom.
Para além dos pássaros, dos grilos, das rãs, dos insectos, silêncio absoluto. Apenas o sol brando, a aragem leve, o ar perfumado.
Se me tenho mantido fiel a este recanto do paraíso onde nasci, muito provavelmente hoje seria um poeta ou um santo, disse para comigo.
O burro deve ter-me lido o pensamento porque, mal eu acabara de pensar isto, ele alongou o focinho e a cauda numa gargalhada estrondosa:
– Uah! Uah! Uah! Ah! Ah! Ah! Brr, brr, brr, ipsilon, ipsilon, ipsilon.
Fugi espavorido.
Ao que eu cheguei. Até os burros se riem de mim...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 209 e s.)
(Já em Julho de 2004 havia divulgado este prolegómeno.)
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