quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Dia 1 [Dezembro de 2008]

Diferenças
Da viagem ao Brasil se tem falado neste espaço, deixando constância das horas felizes que vivemos, das palavras ouvidas e pronunciadas, das amizades antigas e das novas amizades, também dos ecos dolorosos da tragédia de Santa Catarina, aquelas chuvas torrenciais, aqueles morros feitos lama que sepultaram mais de uma centena de pessoas sem defesa, como é norma dos cataclismos naturais que parecem preferir, para vítimas, os mais pobres dos pobres. Regressados a Lisboa seria este o momento de um balanço geral, de um resumo do acontecido, se a discrição nos sentimentos, de que creio ter dado suficientes provas na minha vida, não aconselhasse antes o uso de uma fórmula abrangente e concisa: «correu tudo bem». Se mais algum livro houver ainda, não poderei desejar para ele melhor acolhimento que o que teve este A Viagem do Elefante que nos levou ao Brasil.
Ontem deixei aqui algumas frases admirativas sobre as magníficas instalações da Livraria Cultura, em São Paulo. Ao assunto volto, em primeiro lugar para reiterar como justiça devida, a impressão de deslumbramento que ali experimentámos, Pilar e eu, mas também para algumas considerações menos optimistas, resultantes da inevitável comparação entre uma pujança que não era apenas comercial porque envolvia a boa disposição dos numerosos compradores presentes, e, contraste com a incurável tristeza que acinzenta as nossas livrarias, contaminadas pela deficiente formação profissional e o baixo nível da maioria daqueles que lá trabalham. A indústria livreira do país irmão é uma coisa séria, bem estruturada, que, além dos seus méritos próprios, que não são escassos, conta com apoios do Estado para nós inimagináveis. O governo brasileiro é um grande comprador de livros, uma espécie de «mecenas» público sempre pronto para abrir os cordões à bolsa quando se trate de abastecer bibliotecas, estimular as actividades editoriais, organizar campanhas de difusão de leitura que se caracterizam, como tive ocasião de constatar, pela eficácia das estratégias publicitárias. Todo o contrário do que se passa nestas terras lusas em muitos aspectos ainda por desbravar, à espera de um sinal, de um plano de acção, e também, se se me desculpa o comercialismo, de um cheque. O dinheiro, diz a sabedoria popular, é aquilo com que se compram os melões. E também os livros e outros bens do espírito, Senhor Primeiro-Ministro, que, nestes particulares da cultura, tem andado bastante distraído. Para nosso mal.
José Saramago, O CADERNO

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