sábado, 31 de dezembro de 2011
Dia 31 [Dezembro de 2008]
Israel
Não é do melhor augúrio que o futuro presidente dos Estados Unidos venha repetindo uma e outra vez, sem lhe tremer a voz, que manterá com Israel a «relação especial» que liga os dois países, em particular o apoio incondicional que a Casa Branca tem dispensado à política repressiva (repressiva é dizer pouco) com que os governantes (e porque não também os governados?) israelitas não têm feito outra coisa senão martirizar por todos os modos e meios o povo palestino. Se a Barack Obama não lhe repugna tomar o seu chá com verdugos e criminosos de guerra, bom proveito lhe faça, mas não conte com a aprovação da gente honesta. Outros presidentes colegas seus o fizeram antes sem precisarem de outra justificação que a tal «relação especial» com a qual se deu cobertura a quantas ignomínias foram tramadas pelos dois países contra os direitos nacionais dos palestinos.
Ao longo da campanha eleitoral Barack Obama, fosse por vivência pessoal ou por estratégia política, soube dar de si mesmo a imagem de um pai estremoso. Isso me leva a sugerir-lhe que conte esta noite uma história às suas filhas antes de adormecerem, a história de um barco que transportava quatro toneladas de medicamentos para acudir à terrível situação sanitária da população de Gaza e que esse barco, Dignidade era o seu nome, foi destruído por um ataque de forças navais israelitas sob o pretexto de que não tinha autorização para atracar nas suas costas (julgava eu, afinal ignorante, que as costas de Gaza eram palestinas…). E não se surpreenda se uma das suas filhas, ou as duas em coro, lhe disserem: «Não te canses, papá, já sabemos o que é uma relação especial, chama-se cumplicidade no crime».
31 de Dezembro
• A 31 de Dezembro de 1917, nasceu o professor universitário e ensaísta português, António José Saraiva. Entre as suas obras mais conhecidas, poder-se-ão citar as seguintes: O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, História da Cultura em Portugal e História da Literatura Portuguesa, esta última em parceria com Óscar Lopes.
• Fui avisado, há tempos, pelo labirinto das Contribuições & Impostos, de que tinha a receber do Estado uns dois mil escudos, em reembolso de um excesso de pagamento que fiz, anos atrás, já não sei de que taxa. Ao investigar o caso, informaram-me de que, para os cobrar, eu teria de gastar muito mais do que isso, em selos e papel selado. E o advogado meu informador não me cobrou nada! (Nos EUA, quando me deve dinheiro, o Governo paga-me em cheque, sem mais conversa.) É claro que renunciei logo ao reembolso (?). A Bem da Nação... e do Socialismo! [JRM, 9/3/1977]
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Dia 30 [Dezembro de 2008]
Livro
Estou às voltas com um novo livro. Quando, no meio de uma conversação, deixo cair a notícia, a pergunta que me fazem é inevitável (o meu sobrinho Olmo fê-la ontem): e qual vai ser o título? A solução mais cómoda para mim seria responder que ainda não o tenho, que precisarei de chegar ao fim para me decidir entre as hipóteses que se me forem apresentando (supondo que assim seria) durante o trabalho. Cómoda, sem dúvida nenhuma, mas falsa. A verdade é que ainda a primeira linha do livro não havia sido escrita e eu já sabia, desde há quase três anos (quando a ideia surgiu), como ele se iria chamar. Alguém perguntará: porquê esse segredo? Porque a palavra do título (é só uma palavra) contaria, só por si, toda a história. Costumo dizer que quem não tiver paciência para ler os meus livros, passe os olhos ao menos pelas epígrafes porque por elas ficará a saber tudo. Não sei se o livro em que estou a trabalhar levará epígrafe. Talvez não. O título bastará.
Dia-a-dia
• Considerada nos termos da psicofilosofia de Jung e Freud, a circuncisão, praticada pelos Semitas e outras muitas etnias, é o acto pelo qual o pai, simbolicamente personificado no sacerdote, mutila – castra – o filho, seu rival potencial: antecipação invertida do complexo de Édipo! Por outro lado, funcionalmente, essa mutilação dificulta mais tarde o onanismo masculino, e facilita o coito. Dizem estatísticas médico-cirúrgicas recentes que as esposas dos circuncisos estão muito menos sujeitas ao cancro do colo do útero. [JRM, 8/3/1977]
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Dia 29 [Dezembro de 2008]
Cunhados
São perfeitos. Enfim, quase. Falam alto e sem descanso, apaixona-os a discussão pela discussão, são muitas vezes sectários, violentos de palavras, em todo o caso mais na forma que no fundo. As mulheres, que são cinco, fazem tanto ruído, senão mais ainda que os homens, que são dez. Para eles e para elas nenhum assunto ficará alguma vez suficientemente debatido. Nunca desistem. A pronúncia granadina torna com frequência ininteligível o que dizem. Não importa. Embora eu tenha as minhas dúvidas, afirmam que se entendem uns aos outros perfeitamente. Têm um sentido de humor particular que muitas vezes me ultrapassa e que não raro me leva a perguntar aos meus próprios botões onde estava a graça. Os noivos e as noivas, os esposos e as esposas, grupo em que estou incluído, assistem estupefactos, e, como não podem vencê-los, acabam por juntar-se ao coro, excepto algum raro caso que prefira o discreto silêncio. Em vinte anos nunca vi que destas discussões resultasse uma zanga, um conflito a necessitar conselho de família e reconciliação. Por mais que tenha chovido e trovejado antes, o céu sempre acabará limpo de nuvens. Perfeitos não serão, mas boa gente, sim.
Dia-a-dia
• «O amor sublimado!?», diz este conhecedor de espírito prático. «Antes mil vezes o sublimado corrosivo!» [JRM, 3/3/1977]
• A 29 de Dezembro de 1911, nasce, em Vila Franca de Xira, o escritor português Alves Redol. Foi uma figura central do Neo-Realismo português, sendo autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. De entre a sua obra destacam-se Gaibéus (1939), Fanga (1943), a trilogia do Ciclo Port-Wine (1949-1953) e Barranco de Cegos (1962), porventura o seu romance mais conseguido.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
PÁSSAROS À DESGARRADA
Sentado numa pedra e à sombra dum castanheiro, eu saboreava o silêncio da tarde como quem lê um livro ou ouve música.
No meu caso, a música era a dos pássaros.
Um casal de toutinegras que tem o ninho nas traseiras da casa onde moro, mantinha uma acesa discussão doméstica: crés, crés, crés, lés, crés: sublinhando as palavras com acenos de cauda ou pequenos voos dum lado para o outro.
Empoleirada no cocuruto da chaminé, uma carriça ensaiava solos de prima-dona de teatro lírico.
Nunca tinha reparado que a carriça, a bem dizer um passareco irrisório, cantasse tão bem. Ou será esta a Maria Calas das carriças? Assim no alto da chaminé, bem projectado no espaço, o raio do passaroco até parecia ave de maior vulto. E quanto à cantiga, nada mal.
Dum emaranhado de silvas e salgueiros, vinha o improviso dum rouxinol. E esse sim que é um génio. Creio que adormeci ao som do rouxinol.
Acordei com a sensação de que me estavam a bater à porta. Abri os olhos e vi um burro atrás de mim. Era ele que, incomodado por uma vespa, batia as patas no chão.
As toutinegras continuavam a barafustar, a carriça empoleirada na chaminé e o rouxinol a desfazer-se em melodias, sem nunca repetir a mesma nota.
Já um tentilhão que ensaiava a rabeca lá para a macieira, repisava sempre o mesmo estribilho.
Escondidos na copa dum carvalho alvarinho, um gaio amarelo e um melro pareciam pegados numa desgarrada sem fim à vista. O melro, porém, senhor dum assobio mais poderoso e variado, ia levando a melhor.
Enquanto os ouvia, eu pensava: será que os pássaros são dotados por igual de voz e ouvido, ou também entre eles haverá Amálias Rodrigues e Josés Cabras?
Estive para perguntar ao burro. Mas ele pareceu-me tão filósofo e concentrado que eu não tive coragem de o perturbar.
A meus pés, uma planta de folhas verdes, flores azuis e vários caules em círculo e divergentes a partir da raiz comum, era uma orquestra de instrumentos de corda dedilhados por numerosos insectos da família das abelhas, onde sobressaíam moscões amarelos listrados de preto: vam-am, vam-am, vom-om, vom.
Para além dos pássaros, dos grilos, das rãs, dos insectos, silêncio absoluto. Apenas o sol brando, a aragem leve, o ar perfumado.
Se me tenho mantido fiel a este recanto do paraíso onde nasci, muito provavelmente hoje seria um poeta ou um santo, disse para comigo.
O burro deve ter-me lido o pensamento porque, mal eu acabara de pensar isto, ele alongou o focinho e a cauda numa gargalhada estrondosa:
– Uah! Uah! Uah! Ah! Ah! Ah! Brr, brr, brr, ipsilon, ipsilon, ipsilon.
Fugi espavorido.
Ao que eu cheguei. Até os burros se riem de mim...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 209 e s.)
(Já em Julho de 2004 havia divulgado este prolegómeno.)
Dia-a-dia
• Um génio da superficialidade, dos que por aí aparecem a fazer a inevitável entrevista, atribuiu-me um dia a opinião de que «a vida é muito simples em Nova Iorque». O que eu lhe devo ter dito foi, de facto, o seguinte: «Nesta terra a gente trabalha o dia inteiro para o ganhar, e nos minutos livres elabora os planos de vida; depois faz as compras, cozinha o jantar, tem o trabalho de o comer e digerir, lava a louça, olha a televisão – e deita-se (cedo!) para dormir com a ajuda de uma ou mais pílulas. Tudo para recomeçar no dia seguinte.» Tal é a vida «simples» de muitos milhões. A Jackie Onassis e a Elizabeth Taylor têm, é claro, outra visão e outros hábitos de vida. [JRM, 2/3/1977]
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
NOITE DE NATAL
Ao arrepio de todos os pressupostos, a neve faltou ao Natal. Mas fez-se representar por um seu parente muito próximo: o frio.
Com a idade que tenho, e já não é ela tão pequena, não me lembra de os termómetros atingirem níveis tão baixos em Barroso. O país assistiu, incrédulo, pela televisão, ao espectáculo inédito duns jovens aventureiros de Montalegre a passearem de automóvel sobre as águas geladas do rio Cávado.
No tanque do meu vizinho, o carambelo atingiu dois palmos bem medidos de espessura.
Para dar de beber ao burro, o meu vizinho teve de atacar o gelo a golpes de picareta.
Trabalho baldado. O asno estendeu a beiça, provou e fez uma carranca de repulsa, como a dizer: vai-te lixar, bebe-a tu... E todo arrepiado, em bicos de cascos, fugiu para o ninho.
Burro fino! Tolos são aqueles que saem para a rua com este vento cortante, mais afiado que barbeira de Fígaro de Sevilha.
Antigamente dizia-se que vinha de Espanha. Agora dizem que vem da Sibéria.
O mundo está cada vez mais pequeno.
Pequeno e revolto. Enquanto a Europa treme de frio, a América Latina afoga-se em água e a Austrália é um imenso e incontrolável braseiro.
Quanto a mim, a loucura e ganância do homem há-de dar com o planeta em pantanas. Destroe as florestas, desertifica as terras aráveis, envenena a atmosfera, empeçonha os rios, polui os mares.
Ninguém me tira da cabeça que essa história das viagens no espaço desencadeou a cólera dos deuses do Olimpo. Faz-me lembrar a alegoria bíblica da Árvore do Bem e da Árvore do Mal.
O homem devia ter a humildade de admitir que há coisas que lhe estão vedadas. Quem o mandou meter o nariz no infinito?
O nariz e o resto: sondas, foguetões, satélites, naves espaciais e outras sucatas.
Depois falam em buracos na camada do ozono, efeitos de estufa, aquecimento da terra, liquefacção dos gelos polares, subida dos oceanos, cataclismos.
A vingança dos deuses começou.
A América Latina é um mar de água, a Austrália uma fornalha, toda a Europa uma Sibéria.
Em Barroso, na noite de 24 de Dezembro, os termómetros desceram a treze graus negativos...
– É dose p'ra burro! – como diz o meu vizinho, brasileiro de torna-viagem.
Realmente é. Não obstante, para mim, a Noite de Natal continua a ser a mais quente do ano.
Dia-a-dia
• No oco da noite, é apenas a criança entregue ao perigoso jogo de viver, buscando alucinadamente na Cidade familiar, obscura e desconhecida, o rosto do Amigo que perdeu! E quando, julgando avistá-lo e reconhecê-lo de longe, corre de braços abertos ao seu encontro, com um brado de alegria, verifica com dor e espanto que se enganou: é um rosto estranho! Desfaz-se então em abjectas desculpas, para acordar num suor de agonia – adulta. [JRM, 2/3/1977]
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
26 de Dezembro
• Todo o Amor – o dos Enamorados – é a transmutação, transubstanciação, transcendentalização (ou sublimação!) do simples desejo sexual: dessa misteriosa atracção mútua de duas células que tenazmente se procuram nas trevas do seu pequeno mundo. Desejo de há biliões de anos e soterrado pela crescente complexidade anátomo-fisiológica dos seres e, mais recentemente, pela acumulação multimilenária de hábitos, preceitos e preconceitos, tabus e convenções, inerentes à vida social e familiar possível! [JRM, 2/3/1977]
domingo, 25 de dezembro de 2011
Dia 25 [Dezembro de 2008]
Ceia
Há muitos anos, nada menos que em 1993, escrevi nos Cadernos de Lanzarote umas quantas palavras que fizeram as delícias de alguns teólogos desta parte da Ibéria, especialmente Juan José Tamayo, que desde aí, generosamente, me deu a sua amizade. Foram elas: «Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio». Reconheça-se que a ideia não está mal formulada, com o seu quantum satis de poesia, a sua intenção levemente provocadora e o subentendido de que os ateus são muito capazes de aventurar-se pelos escabrosos caminhos da teologia, ainda que a mais elementar. Nestes dias em que se celebra o nascimento do Cristo, outra ideia me acudiu, talvez mais provocadora ainda, direi mesmo que revolucionária, e que em pouquíssimas palavras se enuncia. Ei-las. Se é verdade que Jesus, na última ceia, disse aos discípulos, referindo-se ao pão e ao vinho que estavam sobre a mesa: «Este é o meu corpo, este é o meu sangue», então não será ilegítimo concluir que as inumeráveis ceias, as pantagruélicas comezainas, as empanturradelas homéricas com que milhões e milhões de estômagos têm de haver-se para iludir os perigos de uma congestão fatal, não serão mais que a multitudinária cópia, ao mesmo tempo efectiva e simbólica, da última ceia: os crentes alimentam-se do seu deus, devoram-no, digerem-no, eliminam-no, até ao próximo natal, até à próxima ceia, ao ritual de uma fome material e mística sempre insatisfeita. A ver agora que dizem os teólogos.
sábado, 24 de dezembro de 2011
Coimbra, 24 de Dezembro de 1979
NATIVIDADE
Nascer e renascer...
Ser homem quantas vezes for preciso.
E em todas colher,
No paraíso,
A maçã proibida.
E comê-la, a saber
Que o castigo é perder
A inocência da vida.
Nascer e renascer...
Renovar sem descanso a condição.
Mas sem deixar de ser
O mesmo Adão
Impenitentemente natural,
Possuído da íntima certeza
De que não há pecado original
Que não seja o sinal doutra pureza.
Dia 24 [Dezembro de 2008]
Natal
Natal. Na província neva.
Nos lares aconchegados
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Por isso tenho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa
24 de Dezembro
• As ideias de Deus, céu, inferno, pecado, alma, eternidade, etc. estiveram sempre ausentes da sua obra, segundo um crítico religioso. Ainda hoje ele se espanta de que tantos homens ilustres tenham vivido a debater tais problemas e a sofrer por eles. E, no entanto, ele tem vivido e sofrido tanto como eles, se não mais, angústias, renúncias, privações, inquietações. Os outros punham em tudo isso o rótulo da Crença; ele sofria apenas como homem, sem qualquer intervenção da metafísica ou da divindade. A sua cruz era real, mas a sua religião não tinha nome.
• Como é consolador saber que neste instante alguém no mundo está pensando em ti! Alguém com quem tu podes, em segredo e liberdade, conversar – ou só monologar – imaginariamente... [JRM, 2/3/1977]
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
CONTO
Saiu da Samardã certo pedreiro,
faminto de ouro, em busca da fortuna.
Embarca, vai-se ao Rio, deita às Minas
e lida e fossa e sua, arranca à Terra
o luzente metal, que o vulgo adora.
Vem rico à Samardã: vinhas, searas,
casas, móveis, baixela compra fofo;
brocados veste, vai-se nos domingos
espanejar à igreja, acompanhado
de lacaios esbeltos. Vem o Cura
saudá-lo coa água benta; os mais graúdos
do lugarejo a visitá-lo acorrem;
para ele os rapapés, as barretadas
se apostavam de longe, a qual mais prestes.
Falaram-lhe os vizinhos, e a gazeta
na célebre Paris, cidade guapa,
onde todo o estrangeiro, nobre ou rico,
vai fazer seu papel. Ei-lo azoado,
que deixa a Samardã, que se apresenta
na capital francesa; roda em coche,
alardeia librés, passeia Louvres,
Versalhes, Trianões. Volta enfadado
à sua Samardã. – «Gabam tal gente
de polida?! Oh, mal haja quem tal disse!
Corri casas, palácios, corri ruas;
não vi um só, nem grande, nem plebeu,
que ao passar me corteje co chapéu!»
Filinto Elísio, Obras, vol. III
faminto de ouro, em busca da fortuna.
Embarca, vai-se ao Rio, deita às Minas
e lida e fossa e sua, arranca à Terra
o luzente metal, que o vulgo adora.
Vem rico à Samardã: vinhas, searas,
casas, móveis, baixela compra fofo;
brocados veste, vai-se nos domingos
espanejar à igreja, acompanhado
de lacaios esbeltos. Vem o Cura
saudá-lo coa água benta; os mais graúdos
do lugarejo a visitá-lo acorrem;
para ele os rapapés, as barretadas
se apostavam de longe, a qual mais prestes.
Falaram-lhe os vizinhos, e a gazeta
na célebre Paris, cidade guapa,
onde todo o estrangeiro, nobre ou rico,
vai fazer seu papel. Ei-lo azoado,
que deixa a Samardã, que se apresenta
na capital francesa; roda em coche,
alardeia librés, passeia Louvres,
Versalhes, Trianões. Volta enfadado
à sua Samardã. – «Gabam tal gente
de polida?! Oh, mal haja quem tal disse!
Corri casas, palácios, corri ruas;
não vi um só, nem grande, nem plebeu,
que ao passar me corteje co chapéu!»
Filinto Elísio, Obras, vol. III
Dia 23 [Dezembro de 2008]
Um ano depois
«Morri» na noite de 22 de Dezembro de 2007, às quatro horas da madrugada, para «ressuscitar» só nove horas depois. Um colapso orgânico total, uma paragem das fungões do corpo, levaram-me ao último limiar da vida, lá onde já é tarde de mais para despedidas. Não recordo nada. Pilar estava ali, estava também Maria, minha cunhada, uma e outra diante de um corpo inerte, abandonado de todas as forças e donde o espírito parecia ter-se ausentado, que mais tinha já de irremediável cadáver que de ser vivente. São elas que me contam hoje o que foram aquelas horas. Ana, a minha neta, chegou na tarde do mesmo dia, Violante no seguinte. O pai e avô ainda era como a pálida chama de uma vela que ameaçasse extinguir-se ao sopro da sua própria respiração. Soube depois que o meu corpo seria exposto na biblioteca, rodeado de livros e, digamo-lo assim, outras flores. Escapei. Um ano de recuperação, lenta, lentíssima como me avisaram os médicos que teria de ser, devolveu-me a saúde, a energia, a agilidade do pensamento, devolveu-me também esse remédio universal que é o trabalho. Em direcção, não à morte, mas à vida, fiz a minha própria «Viagem do Elefante», e aqui estou. Para vos servir.
23 de Dezembro
• Esta virgem de trinta anos, que abafara todos os instintos e resistira a todas as exigências e tentações da carne, parou um dia a admirar um robusto trabalhador de vinte e poucos anos, rosto róseo-tostado e anelado cabelo de ouro, que carregava sem esforço aparente pesadas sacas de cimento. Ele sorriu-lhe à passagem e ela, vendo nele o homem a um tempo idealmente forte e lendariamente belo, sentiu desabrochar-lhe no seio a flor do desejo e da maternidade. Resolveu então pertencer-lhe, e fê-lo seu amante. Meses depois percebeu-se grávida. Tendo cumprido, segundo pensava, a sua missão de mulher, rompeu com o amante lamentoso. O filho nasceu em tempo, um reluzente bebé de mais de três quilos, que era o vivo retrato do progenitor. Não tardou porém que nele se manifestassem os sintomas de hereditária, degenerativa e incurável doença que, aos poucos anos de idade, o fez entrar para o resto dos seus dias num asilo de anormais.
(Outra versão do caso e, como este, sem pretensões de «moralidade», tem como herói um negro, belo como uma estátua: e com idêntico resultado. Não me resolvi a adoptá-la.) [JRM, 1/3/1977]
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Dia 22 [Dezembro de 2008]
Gaza
A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado.
22 de Dezembro
• O poeta que, nas suas horas de convívio, era capaz das mais hilariantes demonstrações de humor e de alegria, quando só, caía com frequência em funda depressão. Mas não era um maníaco-depressivo, e passava de um a outro estado com quase instantânea facilidade. Uma noite em que, numa roda de amigos, atingiu o que lhe parecia ser a suprema e quase delirante euforia, ao voltar a casa, percebendo que nunca mais poderia repetir esse alto grau de embriaguez, resolveu dar, e deu, um tiro nos miolos. Em plena felicidade. [JRM, 1/3/1977]
• José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, faleceu a 22 de Dezembro de 1969, em Vila do Conde, vítima de ataque cardíaco.
• José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, faleceu a 22 de Dezembro de 1969, em Vila do Conde, vítima de ataque cardíaco.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
ANDORINHAS
Dizer que as andorinhas anunciam a Primavera, é um lugar comum. Dizer que elas chegam a Barroso em Março e se vão embora em Setembro, é dos livros. O que não será comum nem dos livros, é o meu amor não correspondido por essas tipas. Tanto gostava de ver um ninho de andorinha no meu beiral e nenhuma delas me faz a vontade. Ainda queria saber que é que elas vêem na casa dos outros que não vejam na minha?
Preferem as paredes lisas e caiadas – dizem-me. Ai sim? Mas a casa onde me criei era de pedra solta e beirais de colmo e elas faziam ninho por tudo quanto era sítio. Era um vaivém constante de asas a roçar-nos as orelhas. Um chilreio ininterrupto de manhã à noite:
«Fui ao mar
E vim do mar
E o meu linho por fiar
Chilriuchiuchiu»
Eu gostava daquilo.
Ensinaram-me a considerá-las «galinhas do Senhor», mensageiras das bênçãos de Deus sobre as casas onde nidificavam. Eu acreditava e tinha por elas o respeito e a veneração devida às coisas sagradas. A tal ponto que, tendo eu sido, em garoto, um predador insaciável de ninhos, nunca toquei num de andorinha. Mas não resistia à curiosidade de os observar. Fiquei assim a saber que elas chocam duas ninhadas por ano, entre quatro a seis ovos de cada vez. Equivale isto a dizer que em Setembro regressam dez vezes mais do que chegam em Março. Daí serem recebidas com o estribilho:
«Eh, andorinhas loucas
Que fostes tantas
E vindes tão poucas...»
Cada vez menos e cada vez mais perliquitetes.
Desprezam quem as ama e apegam-se a quem as odeia.
O meu vizinho Fagundes todos os anos lhes destroe os ninhos a ponta de lareiro e elas todos os anos fazem o ninho no beiral do Fagundes.
A minha vizinha Maricotas dependura balões no telhado para as afugentar e elas habituam-se ao batuque dos balões impelidos pelo vento e continuam a fazer ninho no beiral da Maricotas.
E a mim, que tanto gostava de ver um ninho de andorinha no meu beiral, votam-me ao desprezo.
«Avezinhas do Senhor»? «Avezinhas do Senhor» uma gaita! Que as leve o diabo!
21 de Dezembro
• Que mania a deste sujeito! Desatar a pensar em público e raso, quando nós andamos quase todos a fazer força para não pensar! Ou a fingir que não pensamos! [JRM, 1/3/1977]
• Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 — Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX. Lembrá-lo aqui…
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
DIÁRIO (XIII)
Quinta do Vale de Malhadas, Freixo de Numão, 20 de Dezembro de 1979 – Uma alvorada de começo do mundo. Estou a olhar os montes com a sensação de que os surpreendo no momento da Criação. Tem este dom a paisagem duriense: dá-nos sempre a impressão de que nasce todas as manhãs.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
DIÁRIO (XIII)
Quinta do Vale de Malhadas, Freixo de Numão, 19 de Dezembro de 1979 – Depois de um dia venatório que nenhuma natureza razoável é capaz de imaginar, estou aqui, com o corpo num feixe, a pensar se não será por orgulho instintivo que cometo estas loucuras. É que, em face delas, eu próprio fico sem pé para me queixar dos males de que na verdade sofro. Males humilhantes, que aconselhariam resignação e remanso, e que, pelo contrário, desafio à sobreposse, como se estivesse na minha vontade o poder de também os humilhar.
domingo, 18 de dezembro de 2011
Dia 18 [Dezembro de 2008]
Editores
Voltaire não tinha agente literário. Não o teve ele nem nenhum escritor do seu tempo e de largos tempos mais. O agente literário simplesmente não existia. O negócio, se assim lhe quisermos chamar, funcionava com dois únicos interlocutores, o autor e o editor. O autor tinha a obra, o editor os meios para publicá-la, nenhum intermediário entre um e outro. Era o tempo da inocência. Não quer isto dizer que o agente literário tenha sido e continue a ser a serpente tentadora nascida para perverter as harmonias de um paraíso que, verdadeiramente, nunca existiu. Porém, directa ou indirectamente, o agente literário foi o ovo posto por uma indústria editorial que havia passado a preocupar-se muito mais com um descobrimento em cadeia de best-sellers que com a publicação e a divulgação de obras de mérito. Os escritores, gente em geral ingénua que facilmente se deixa iludir pelo agente literário do tipo chacal ou tubarão, correm atrás de promessas de vultosos adiantamentos e de promoções planetárias como se disso dependesse a sua vida. E não é assim. Um adiantamento é simplesmente um pagamento por conta, e, quanto a promoções, todos temos a obrigação de saber, por experiência, que as realidades ficam quase sempre aquém das expectativas.
Estas considerações não são mais que uma modesta glosa da excelente conferência pronunciada por Basilio Baltasar em finais de Novembro no México, com o título de «A desejada morte do editor», na sequência de uma entrevista dada a El País pelo famoso agente literário Andrew Wylie. Famoso, digo, embora nem sempre pelas melhores razões. Não me atreveria, nem seria este o lugar adequado, a resumir as pertinentes análises de Basilio Baltasar a partir da estulta declaração do dito Wylie de que «O editor é nada, nada» e que me recorda as palavras de Roland Barthes quando anunciou a morte do autor… Afinal, o autor não morreu, e o ressurgimento do editor amante do seu trabalho está nas mãos do editor, se assim o quiser. E também nas mãos dos escritores a quem vivamente recomendo a leitura da conferência de Basilio Baltasar, que deverá ser publicada, e um seu consequente debate.
18 de Dezembro
• Certo escritor queixava-se à esposa de não poder ou saber, ele, organizar o seu horário de trabalho de modo a produzir mais e melhor. Responde ela: «Porque é que tu não fazes como o Hemingway, que se levantava todos os dias antes de nascer o Sol, e escrevia assim nas horas de paz e frescura da manhã?» «Pois é», tomou ele pensativo, «mas eu já fiz setenta e cinco anos, e (salvo seja o génio!) ele tinha só sessenta e um quando explodiu os miolos com duas chumbadas!» [JRM, 29/2/1977]
sábado, 17 de dezembro de 2011
17 de Dezembro
• Ex-presidente francês Jacques Chirac é condenado por peculato a dois anos de prisão, com pena suspensa.
Dia 17 [Dezembro de 2008]
Palavras
Não pode haver conferência de imprensa sem palavras, em geral muitas, algumas vezes demasiadas. Pilar insiste em recomendar-me que dê respostas breves, fórmulas sintéticas capazes de concentrar longos discursos que ali estariam fora de lugar. Tem razão, mas a minha natureza é outra. Penso que cada palavra necessita sempre pelo menos outra que a ajude a explicar-se. A coisa chegou a um ponto tal que, de há tempos a esta parte, passei a antecipar-me às perguntas que supostamente me farão, procedimento facilitado pelo conhecimento prévio que venho acumulando sobre o tipo de assuntos que aos jornalistas mais costumam interessar. O divertido do caso está na liberdade que assumo ao iniciar uma exposição dessas. Sem ter de preocupar-me com os enquadramentos temáticos que cada pergunta específica necessariamente estabeleceria, embora não fosse essa a sua intenção declarada, lanço a primeira palavra, e a segunda, e a terceira, como pássaros a que foi aberta a porta da gaiola, sem saber muito bem, ou não o sabendo de todo, aonde eles me levarão. Falar torna-se então numa aventura, comunicar converte-se na busca metódica de um caminho que leve a quem estiver escutando, tendo sempre presente que nenhuma comunicação é definitiva e instantânea, que muitas vezes é preciso voltar atrás para aclarar o que só sumariamente foi enunciado. Mas o mais interessante em tudo isto é descobrir que o discurso, em lugar de se limitar a iluminar e dar visibilidade ao que eu próprio julgava saber acerca do meu trabalho, acaba invariavelmente por revelar o oculto, o apenas intuído ou pressentido, e que de repente se torna numa evidência insofismável em que sou o primeiro a surpreender-me, como alguém que estava no escuro e acabou de abrir os olhos para uma súbita luz. Enfim, vou aprendendo com as palavras que digo. Eis uma boa conclusão, talvez a melhor, para este discurso. Finalmente breve.
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Certo escritor queixava-se à esposa de não poder ou saber, ele, organizar o seu horário de trabalho de modo a produzir mais e melhor. Responde ela: «Porque é que tu não fazes como o Hemingway, que se levantava todos os dias antes de nascer o Sol, e escrevia assim nas horas de paz e frescura da manhã?» «Pois é», tomou ele pensativo, «mas eu já fiz setenta e cinco anos, e (salvo seja o génio!) ele tinha só sessenta e um quando explodiu os miolos com duas chumbadas!»
[29/2/1977]
Evento recente
Início de uma onda de protestos na Rússia contra supostas fraudes nas eleições parlamentares do país.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Dia 16 [Dezembro de 2008]
O golpe final
O riso é imediato. Ver o presidente dos Estados Unidos a encolher-se atrás do microfone enquanto um sapato voa sobre a sua cabeça é um excelente exercício para os músculos da cara que comandam a gargalhada. Este homem, famoso pela sua abissal ignorância e pelos seus contínuos dislates linguísticos, fez-nos rir muitas vezes durante os últimos oito anos. Este homem, também famoso por outras razões menos atractivas, paranóico contumaz, deu-nos mil motivos para que o detestássemos, a ele e aos seus acólitos, cúmplices na falsidade e na intriga, mentes pervertidas que fizeram da política internacional uma farsa trágica e da simples dignidade o melhor alvo da irrisão absoluta. Em verdade, o mundo, apesar do desolador espectáculo que nos oferece todos os dias, não merecia um Bush. Tivemo-lo, sofremo-lo, a um ponto tal que a vitória de Barack Obama terá sido considerada por muita gente como uma espécie de justiça divina. Tardia como em geral a justiça o é, mas definitiva. Afinal, não era assim, faltava-nos o golpe final, faltavam-nos ainda aqueles sapatos que um jornalista da televisão iraquiana lançou à mentirosa e descarada fachada que tinha na sua frente e que podem ser entendidos de duas formas: ou que esses sapatos deveriam ter uns pés dentro e o alvo do golpe ser aquela parte arredondada do corpo onde as costas mudam de nome, ou então que Mutazem al Kaidi (fique o seu nome para a posteridade) terá encontrado a maneira mais contundente e eficaz de expressar o seu desprezo. Pelo ridículo. Um par de pontapés também não estaria mal, mas o ridículo é para sempre. Voto no ridículo.
Aforismos & desaforismos de Aparício
• O grande pianista acabava de tocar magistralmente La Vallée des Claches, de Ravel. Um ouvinte, de ideias provavelmente menos ortodoxas, levantou-se e perguntou-lhe: «Então o senhor prefere O Vale dos Sinos às Catedrais Submersas!?» Não se sabe qual foi a resposta do pianista.
[28/2/1977]
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Dia 15 [Dezembro de 2008]
Borges
Maria Kodama voltou a Portugal, desta vez para assistir à inauguração de um monumento a Jorge Luis Borges. Havia bastante público no Jardim do Arco do Cego, onde a memória foi implantada. Uma banda filarmónica tocou o hino de Argentina e também, não o hino nacional português, mas o hino da Maria da Fonte, expressão musical da revolução a que foi posto esse nome por alturas de 1846-47 e que ainda hoje continua a ser tocada em cerimónias civis e militares. O monumento é simples, um bloco vertical de granito da melhor qualidade no qual se abre um vão onde uma mão dourada, molde directo da mão direita de Jorge Luis Borges, segura uma caneta. É simples, evocativo, muito preferível a um busto ou uma estátua em que nos cansaríamos a procurar semelhanças. Improvisei umas quantas palavras sobre o autor de Ficções, a quem continuo a considerar como o inventor da literatura virtual, essa sua literatura que parece ter-se desprendido da realidade para melhor revelar os seus invisíveis mistérios. Foi um bom princípio de tarde. E Maria Kodama estava feliz.
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Aquele seu querido Amigo que ele em tempos considerava como «o Picasso da linguagem literária» anda hoje por aí a equilibrar a caneta na ponta do nariz, com o aplauso da galeria deste circo sem clown.
[25/2/1977]
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
SÃO PASCÁCIO
Havia lá na minha terra um padre muito dado à gula. Onde farejasse comezaina, fosse casamento, baptismo, funeral, matança de porcos, piquenique ou brequefesta, estava lá caído. Não satisfeito com isso, volta e meia engodava os paroquianos para uma festa.
– Meus irmãos – dizia ele do altar a baixo – na próxima quinta-feira é dia santo de guarda. Memória de S. Pascácio, doutor da igreja e advogado de teólogos e pregadores. Grande e milagreiro santo, digno de todo o nosso reconhecimento. Por isso proponho que lhe façamos uma festa de sermão e missa cantada. E para que a cerimónia tenha o brilho e a pompa que S. Pascácio merece e espera de todos os pacóvios, vou convidar alguns colegas. Eles, que são homens de Deus, vêm de graça. Mas nós, que somos homens de brios, não vamos permitir que eles venham a seco. Temos de lhes dar o almoço. Noblesse oblige[1]. Ora aí é que a porca torce o rabo, que o mesmo é dizer que a chambrelheira da residência está limpa como pernil de burro esburgado por um lobo. E como não seria bonito nem justo que, em dia tão festivo, em casa do padre se comesse de magro, peço-vos que me mandeis à residência com que adubar a sopa, o conduto e o postre. Lembrai-vos que é a honra da paróquia que está em causa. S. Pascácio vos retribuirá, se não cem por um, o que seria pedir muito, pelo menos dobrado contra singelo. Seja tudo em desconto dos nossos pecados e ad majorem Dei gloriam. Amém.
Por honra da paróquia, devoção a S. Pascácio, maior glória de Deus e super omnia, desconto dos seus, deles, pecados, os paroquianos encheram a residência de chouriças, salpicões, orelheiras, pernis, chispes, coelhos, galos, perdizes, trutas, doces, vinho.
Os reverendos párocos apanharam uma piela que andaram um mês com as reverendas bocas a saberem-lhes a papéis de música gregoriana.
Decorrido ele, o padre propôs uma festa a Santo Hilarião, advogado dos tristes.
E ainda uma outra a Santa Cocufata, protectora das virgens em risco.
Até que os paroquianos se cansaram daquilo e resolveram fazer greve:
– «Muito come o tolo, mais tolo é quem lho dá».
O padre marcou uma festa a Santa Conegundes, padroeira das viúvas inconsoláveis.
Na véspera, diz-lhe a governanta:
– Ó senhor abade? Olhe que os fregueses, desta vez, não mandaram nada...
– Tu nem me digas...
– Até ao momento, nem para a cova dum dente...
– Mil raios os partam! E agora? Os convites estão feitos...
– Não sei que lhe faça.
– Sei eu. Desenrasca-te! Pede emprestado, compra, rouba! Desenrasca-te!
No dia seguinte o padre sobe ao púlpito e diz:
– Paroquianos! Vós sois pior do que os meus cães. A eles, faço-lhes uma festa e eles dão ao rabo. A vós, faço-vos uma festa e vós não dais nada...
[1] noblesse oblige fr A nobreza obriga. Um cavalheiro educado não pode comportar-se como um desclassificado.
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Nosce te ipsum [1] – é fácil dizer! Quanto mais procuro conhecer-me ou confessar-me, mais difícil isso se me torna: mais confuso, complexo e polivalente me descubro. Quando mais próximo me julgo do «caroço» do Eu, mais longe dele me encontro!
[23/2/1977]
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Para o salazarismo, a História de Portugal deixou de existir – é um espaço vão, um vácuo – desde o reinado da senhora Dona Maria II até 1926. A nova «escola» (ou falta dela) pretende apagar tudo desde 1415 até 1954. Como se vê, vai muito mais longe. E igualmente por motivo de princípios e doutrinas. A verdade continua no poço.
[23/2/1977]
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Um poeta conhecido sobe, à noite, a Rua Nova do Carmo, orando para a roda dos satélites, que o escutam em silêncio e respeito. Quase ao dobrar a esquina para a Rua Garrett, esbarra com um confrade igualmente famoso, que desce, acompanhado também da sua corte. Param, abraçam-se, quase se beijam, olham-se enternecidos e sorridentes. «Não há quem no veja!... Bons olhos!... Há quanto tempo!... Felicíssimo!... Admirador constante!...», e outras expressões de mútua estima e consideração. Todos os presentes exultam.
Separam-se e continuam, um, a subir, o outro, a descer a reluzente calçada. Diz o primeiro:
«Este grandecíssimo escroque, que me deve dinheiro e favores, que já me tem plagiado e pregado diversas partidas, e anda por aí a dizer horrores de mim, merecia era que eu lhe cuspisse na cara!» Et cetera. Os satélites escutam-no, estarrecidos e venerantes.
Entretanto, o Poeta que desce repete para o seu próprio séquito, aproximadamente, as mesmas diatribes e lisonjeiras ausências ao primeiro. Escutado com não menos deferência e constrangimento. E a noite corre.
Autêntico! Assim era no tempo em que havia Poetas no Chiado. E admiradores fiéis. E franqueza – pelas costas.
[23/2/1977]
Dia 12 [Dezembro de 2008]
Baltasar Garzón (2)
O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclamam de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?
O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.
Um auditório multitudinário e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair na permissividade da abjecção.
A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos.
Evento recente
• Início de uma onda de protestos na Rússia contra supostas fraudes nas eleições parlamentares do país.
domingo, 11 de dezembro de 2011
Dia 11 [Dezembro de 2008]
Baltasar Garzón (1)
Apesar do tempo agreste, com chuva a espaços e frio, o cinema estava cheio. Carmen Castillo temia que as duas horas e meia de projecção do seu documentário acabassem por fazer desanimar a assistência, mas não foi assim. Nem uma só pessoa se levantou para sair e, no final, com os espectadores rendidos à força das imagens e aos testemunhos estremecedores dos membros do MIR sobreviventes da ditadura, Carmen foi aplaudida de pé. Nós, os da Fundação, estávamos orgulhosos daquele público. Havia confiança, mas a realidade excedeu as previsões mais optimistas.
À hora a que escrevo, mais de duzentos mil exemplares da Declaração Universal dos Direitos Humanos circulam nas mãos de outros tantos leitores dos jornais Diário de Notícias, de Lisboa, e Jornal de Notícias, do Porto. E hoje, dia 11, será a vez de Baltasar Garzón, que vem expressamente de Madrid para falar de direitos humanos, de Chile e de Guantánamo. Tal como a homenagem às Letras Portuguesas que se realizou ao fim da tarde com grande êxito, a conferência de Garzón será na Casa do Alentejo, às 18 horas. É uma boa ocasião para aprender.
DIÁRIO (XIII)
Coimbra, 11 de Dezembro de 1979 – Falava-se da imparável progressão do comunismo no mundo e, naturalmente, das muitas razões do facto. E não resisti à tentação de as condensar, como se fazia na catequese com os mandamentos da lei de Deus, que eram dez e se resumiam a dois. Arrisquei que o fenómeno advinha fundamentalmente da circunstância de haver no marxismo uma componente messiânica de raiz judaico-cristã, que há milénios enche de esperança as almas sedentas de justiça, e de se tratar de uma ideologia ao mesmo tempo simples e complexa, capaz de satisfazer desde o mais rude até ao mais complicado espírito. Tal e qual como a doutrina católica, que pode ser entendida ao nível do catecismo ou da patrística.
MIGUEL TORGA
Aforismos & desaforismos de Aparício
• O perfeito ou absoluto convívio – digo eu, feito de intimidade, sinceridade e confiança – entre a mulher e o homem, sem o ultimate sex, é provadamente impossível, exceptuados os casos de total impotência – e mesmo assim, quem sabe!... Porque o pobre macho não desiste de o ser, nem mesmo correndo o risco da autodestruição física e/ou mental. E, no entanto, é esse convívio supremo, o dos espíritos, que os mais sábios procuram.
[22/2/1977]
sábado, 10 de dezembro de 2011
Dia 10 [Dezembro de 2008]
Homenagem
Hoje, o encontro é na Casa do Alentejo, às 6 da tarde. Como se refere no título, trata-se de uma homenagem. Homenagem a quem? A ninguém em particular, pois que ela contemplará as próprias Letras Portuguesas na sua totalidade, por assim dizer de A a Z, celebradas num acto de canto e de leituras a cargo de vinte escritores, actores e jornalistas que, generosamente, puseram o seu tempo e o seu talento ao serviço de uma ideia nascida na Fundação. O dia escolhido, este 10 de Dezembro de 2008, rememora a entrega do Prémio Nobel a um escritor português que, no seu discurso de agradecimento, entendeu dever partilhar a distinção não só com todos os escritores seus contemporâneos, sem excepção, mas também com os que nos antecederam, aqueles que, no dizer de Camões, da lei da morte se libertaram. Serão lidos ou cantados textos dos seguintes autores: Antero de Quental, Padre António Vieira, Vitorino Nemésio, José Cardoso Pires, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner, Pedro Homem de Mello, Miguel Torga, Eça de Queiroz, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Camilo Castelo Branco, Manuel da Fonseca, Almada Negreiros, José Gomes Ferreira, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Aquilino Ribeiro, Almeida Garrett, Luís de Camões, Carlos de Oliveira e Fernando Namora. Um verdadeiro quadro de honra que a todos deve honrar-nos.
Dia Internacional dos Direitos Humanos
A 10 de dezembro de 1948, foi aprovada e proclamada, na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Aforismos & desaforismos de Aparício
• Sim, estou talvez «atrasado» em relação ao muito que «isto» tem mudado nos últimos cinquenta anos: mas, em primeiro lugar, não há presença mais lúcida que a dos ausentes; depois, vendo as coisas de perto, «isto» tem mudado imenso... retrogrativamente.
[20/2/1977]
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Almeida Garrett
A 9 de Dezembro de 1854, morre, em Lisboa, João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, escritor e dramaturgo romântico. Grande impulsionador do teatro em Portugal, para além de ter proposto a edificação do Teatro Nacional D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática, deixou-nos obras imortais como Frei Luís de Sousa e O Alfageme de Santarém. Na última fase da sua vida publicou Flores sem Fruto e Folhas Caídas, duas colectâneas de poesias que introduziram na literatura portuguesa uma espontaneidade e uma simplicidade até então praticamente desconhecida. Foi, ainda, um exímio orador, tendo sido nomeado Par do Reino e secretário de Estado honorário.
Evento recente
Anunciada a descoberta de Kepler-22b, um exoplaneta que orbita em uma zona habitável de uma estrela como o Sol.
Dia 9 [Dezembro de 2008]
Calle Santa Fe
A rua existe, está em Santiago de Chile. Ali, os esbirros de Pinochet cercaram um casa térrea onde viviam (melhor será dizer que se refugiavam) Carmen Castillo e o seu companheiro de vida e de acção política Miguel Enríquez, dirigente principal do M.I.R., sigla do Movimiento de Izquierda Revolucionario que havia apoiado e colaborado com Salvador Allende e agora era objecto da perseguição do poder militar que havia traído a democracia e se preparava para estabelecer uma das mais ferozes ditaduras que a América do Sul teve a desgraça de conhecer. Miguel Enriquez foi morto, gravemente ferida Carmen Castillo, que estava grávida. Muitos anos depois, Carmen vem recordar e reconstituir esses dias num documentário de impressionante sinceridade e realismo que teremos o privilégio de ver esta noite no cinema King. Documentário que é, ao mesmo tempo, graças ao saber e à sensibilidade da sua realizadora, cinema da mais alta qualidade. Até logo, pois.
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