
JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS
um homem
sorri a morte
-com
meia cara
Editorial Estampa
IN MEMORIAM
DO
DOUTOR FRANCISCO PULIDO
VALENTE,
mestre
de médico e de homem,
E DO
DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,
grande
coração ao serviço das almas
J. R. M.
Ao
traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia
reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor
falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e
sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num
meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de
confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas,
usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não
dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a
crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions;
de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera
gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição,
quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de
Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do
piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da
pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um
enigma que empolga os homens.
Mas,
independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não
é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência
pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos
demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos
secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira
mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e
pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e
da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino
pessoal.
Sim,
foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do
fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber
como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para
aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei
pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a
dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos
e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema
pessoal se apaga e some.
Que
escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com
objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se
desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos
preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e
campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem
se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O
que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do
indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar
para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a
ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se,
ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com
profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da
medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria
de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe
tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer
dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de
epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua
presença.
J.R.M.