quarta-feira, 14 de março de 2012

DIA DE SÃO NUNCA À TARDE

Hoje, segunda-feira, 1 de Novembro, acordei com a casa inundada de sol. Ainda bem, disse para comigo, já estava farto de chuva. Toca a saltar da cama e ir de passeio por esses caminhos de Peireses, sem dúvida uns dos mais bonitos do planeta, mas também dos mais mal tratados. Só de galochas. Mas eu não gosto de galochas. Um indivíduo de galochas, lembra-me sempre um parreco...
Enfiei botas de montear e saí. Mas não fui longe. Está sol, sim senhor, mas um frio de meter o rabo entre as pernas a um lobo.
E agora aqui estou eu de pés à borralha e a rememorar histórias relacionadas com o dia de Todos-os-Santos. Em primeiro lugar aquela muito conhecida dum fulano que tocou uma junta de bois à feira. Estava ele lá com os bois no toural, aparece um compadre a gabar-lhe a fazenda.
– Quer-mos comprar?
– Por quanto?
– Cem moedas.
– Se mos der fiados.
– Até quando?
– Dia de São Nunca à tarde...
– Negócio fechado.
Era isto na feira dos doze de Outubro. Logo adiante, a 1 de Novembro, estava o dono dos bois a bater à porta do comprador.
– Eh, compadre? Você por aqui?
– Venho buscar o dinheiro dos bois.
– Mas eu disse-lhe que só lhos pagaria no dia de São Nunca?
– Precisamente. Se hoje é Dia de Todos-os-Santos, também é dia de São Nunca.
Esta a história que eu ouvia contar desde pequeno.
No dia de Todos-os-Santos, forçoso é pensar no Terramoto de Lisboa.
À dolorosa evocação deste infausto acontecimento, andam ligadas no meu espírito, entre muitas outras coisas, naturalmente, duas histórias. A primeira é a de um misterioso personagem conhecido na crónica lisboeta dos últimos duzentos e cinquenta anos pela alcunha de O Manteigueiro, cognome que lhe teria advindo do facto de ter sido negociante de manteiga por grosso. Das raras referências a este sujeito que tenho lido, colijo o seguinte. Chamava-se Domingos Mendes Dias e era natural de Medeiros, onde se teria mantido desde que nasceu até pôr navalha na cara. Nesta altura, sentindo-se de repente arrebatado nas asas da aventura, roubou duas cabras ao pai e fugiu para Lisboa. O dinheiro duma das cabras, gastou-o na viagem. Com o da outra, comprou um barril e uma corda e foi vender água à compita com os galegos. Depois perdemo-lo de vista. Reaparece anos mais tarde na pele do homem mais rico de Portugal na segunda metade do século XVIII. Para esta tão inesperada como descomunaI fortuna, aventam os historiadores três hipóteses: negócio de escravos no Brasil; mão baixa no cofre dos jesuítas aquando da expulsão dos mesmos pelo marquês de Pombal; golpe de mão por alturas do terramoto de 1755. Seja como for, este ladrão de cabras, aguadeiro, negociante de sebo, e, ao que tudo indica, golpista bem sucedido, tomou-se-me odioso por várias razões. Ter deixado em Lisboa um palácio que ainda hoje o recorda, O Palácio do Manteigueiro, e não ter deixado em Medeiros, sua terra natal, aqui a dois passos de Peireses, nada que indique a sua passagem por este mundo; viver num palácio com puxadores de ouro nas portas e apenas uma escrava preta e velha a servi-lo; ser tão avarento, que preferiu morrer a gastar dinheiro na cura dos ferimentos que uns gatunos lhe fizeram quando regressava, lusco-fusco e de saco às costas, duma quinta que possuía nos arredores; tão bacoco e enfatuado que legou toda a sua fortuna, uns seis milhões e meio de cruzados,[1] ao Morgado de Vilar de Perdizes, sob condição de o fidalgo o tratar por primo, e não haver notícia de ter socorrido pais, irmãos, sobrinhos e demais família, tudo gente humilde, suponho eu, com um chavo que fosse. Um bruto. Até já estou arrependido de ter falado nele. Mas, já agora, quod scripsi, scripsi. Que se lixe O Manteigueiro.
E, voltando ao terramoto de 1755, não resisto à tentação de transcrever um trecho de Voltaire, paladino incomparável no combate ao obscurantismo. Aí vai ele: «Depois do terramoto que tinha destruído três quartos de Lisboa, os sábios do país não tinham encontrado meio mais eficaz de evitar uma ruína total do que dar ao povo um belo auto-de-fé; fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento com luzido cerimonial é um segredo infalível para evitar que a terra trema.
«Tinham, por consequência, agarrado um biscainho convicto de ter casado com uma sua comadre, e dois portugueses que, ao comerem um frangão, deixaram no prato o toucinho que o lardeava.» Aqui Voltaire descreve o auto-de-fé em que o biscainho e os dois portugueses foram queimados vivos e acrescenta, com aquela ironia de que só ele era capaz: «No mesmo dia, a terra tremeu de novo com um estrondo espantoso.»[2]
Mas as melhores recordações que desta época do ano guardo na saudade são as relacionadas com as Feiras-dos-Santos. À de Montalegre, raro o ano que lá não ia. À de Chaves, fui apenas duas vezes durante a minha infância. A primeira em companhia de meu Pai que tencionava trocar de cavalo. A feira do gado fazia-se num amplo toural formado pela margem direita do Tâmega e esquerda do Rivelas, no leito do qual a água das Caldas borbulhava e as sopeiras vinham depenar galinhas mortas. A secção dos burros era a primeira a partir da Ponte Romana. Consistia o meu papel em segurar o cavalo pela arreata, enquanto o meu Pai ia à procura de coisa que lhe agradasse. A meu lado estava o Belino de Torgueda, o melhor tocador de burros que alguma vez a rosa do sol cobriu. Às tantas chega-se a ele um rapazito debulhado em lágrimas:
– Ó Ti Belino? O meu avô pede a sua ajuda.
– Para quê, meu homem?
– Uns fidalgos estão a fazer pouco de nós...
– E onde está o teu avô?
– Acolá.
Olhamos na direcção indicada e vimos um grupo de fidalgotes, desses pseudo-marialvas que armam em engraçados e gostam de se divertir à custa dos pobres, a montar e desmontar, em grande galhofa, dois pequenos jericos que um velhote em vão tentava defender.
– Segura aqui – disse o Belino, entregando a arreata do cavalo ao garoto.
Aproxima-se devagar, como quem não quer a coisa. De golpe, salta nos rufias à vergastada por aquelas nádegas, que era um consolo vê-los a esgueirar-se cada qual por onde podia, mãos a proteger a cabeça e aos gritos de ó-da-guarda! Grande rebuliço entre os feirantes, acode a polícia, o diabo a quatro. O Belino dá dois pulos às Poldras, ala!, direito à outra margem.
Um quarto de hora decorrido, regressava ele dos lados da Ponte Romana misturado na multidão, o ar mais inocente deste mundo.
– Vai lá ter com o teu avô e, se os fidalgos se voltarem a meter convosco, chama por mim.
Homem de rasgo, o Belino de Torgueda!
Da segunda vez, em companhia dum alegre rancho de moças, entre elas três das minhas quatro irmãs. A pé... estrada fora... ao longo de quarenta e tal quilómetros... Elas todas catitas, cabelo frisado, vestidos de chita, meias de vidro, socas de verniz. Primeiro bem nos correu. Por alturas da serra do Fontão, é que foram elas. Desata a chover, primeiro água frigidíssima, depois saraiva. Em vez de caminharem, as meninas encolhiam-se de encontro às giestas marginais às valetas como ovelhas obrijadas às paredes. Nisto passa um sujeito numa carroça vazia atrelada a um macho. Quedámos todos a olhar para ele, na esperança de que nos oferecesse boleia. Mas ele fazia-se desentendido e passava à frente. Vai a Tizabel do Pinto, que era a guardiã do rancho, do qual fazia parte a filha, saca dum revólver da algibeira, dá um pulo e intima o carroceiro:
– Eh, homem ou raio! Ou dá aqui uma boleia a estas moças, ou leva-o aqui o diabo!
Ele riu-se:
– Está bem, patroazinha. Recolha lá a arma e mande subir as moças.
Mulher de rasgo, a Tizabel do Pinto!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 29 e ss.)


[1] Numa das «Novelas do Minho», A Morgada de Romariz, Camilo Castelo Branco, apoiando-se em documentos históricos, conta o seguinte. Precisamente na segunda metade do século XVIII, um próspero negociante de Lisboa chamado António da Costa Araújo, mais conhecido pela alcunha de o Jóia, deixou a seu irmão Bento, natural e morador em Famalicão, onde exercia o ofício de pedreiro, «cinquenta e seis mil cruzados e tanto!» Este Bento, que era muito miserável e avarento, pretendeu negar e esconder a herança. Camilo comenta: «Quem poderia herdar secretamente herança tamanha num tempo em que bazofeava por Lisboa um argentário a quem chamavam O trezentos mil cruzados, por que ele, vindo do Brasil, manifestara aquela colossal e quase fabulosa quantia!» Agora comparem os «cinquenta e seis mil cruzados e tanto!» do Bento pedreiro, ou os «Trezentos mil cruzados» do argentário lisboeta, com os «seis milhões e meio de cruzados» do Manteigueiro...
[2] Voltaire – Candide, ou l'Optimisme, cap. VI (De como se fez um belo auto-de-fé para evitar terramotos.)

Sem comentários:

Enviar um comentário