segunda-feira, 26 de março de 2012

Dia 26 [Março de 2009]

Questão de cor
Diálogo num anúncio de automóveis na televisão. Ao lado do pai, que conduz, a filha, de uns seis ou sete anos, pergunta: «Papá, sabias que a Irene, a minha colega da escola, é negra?» Responde o pai: «Sim, claro…» E a filha: «Pois eu não…» Se estas três palavras não são precisamente um soco na boca do estômago, uma outra coisa serão com certeza: um safanão na mente. Dir-se-á que o breve diálogo não é mais que o fruto do talento criador de um publicitário de génio, mas, mesmo aqui ao lado, a minha sobrinha Júlia, que não tem mais que cinco anos, perguntada sobre se em Tías, localidade onde vivemos, havia negras, respondeu que não sabia. E Júlia é chinesa…
Diz-se que a verdade sai espontaneamente da boca das crianças, porém, vistos os exemplos dados, não parece ser esse o caso, uma vez que Irene é realmente negra e negras não faltam também em Tías. A questão é que, ao contrário do que geralmente se crê, por muito que se tente convencer-nos do contrário, as verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas, só a mentira é global. As duas crianças não viam negras, viam pessoas, pessoas como elas próprias se vêem a si mesmas, logo, a verdade que lhes saiu da boca foi simplesmente outra.
Já o sr. Sarkozy não pensa assim. Agora teve a ideia de mandar proceder a um censo étnico destinado a «radiografar» (a expressão é sua) a sociedade francesa, isto é, saber quem são e onde estão os imigrantes, supostamente para os retirar da invisibilidade e comprovar se as políticas contra a discriminação são eficazes. Segundo uma opinião muito difundida, o caminho para o inferno está calcetado de boas intenções. Por aí creio que irá a França se a iniciativa prospera. Não é nada difícil imaginar (os exemplos do passado abundam) que o censo possa vir a converter-se num instrumento perverso, origem de novas e mais requintadas discriminações. Estou a pensar seriamente em pedir aos pais de Júlia que a levem a Paris para aconselhar o sr. Sarkozy…
José Saramago, O CADERNO

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