terça-feira, 20 de março de 2012

COISAS DE SONETOS E DE BEIJOS

Antigamente, aqueles que presumiam de eruditos e latinistas, estampavam na última página dos livros este assomo de vaidade mascarado de modéstia: Faci quod potui. Faciant meliora potentes. (Fiz o que pude. Faça melhor quem puder.) No meu caso, tenho consciência de não ter feito pelo Correio do Planalto tudo o que podia, mas apenas o que me foi possível ou as circunstâncias duma vida profissional demasiado absorvente o permitiram. Seja como for, dediquei a este jornalzinho de província, ao longo destes últimos trinta anos, alguns milhares de horas que podia ter dedicado a fazer qualquer outra coisa, verbi gralia, de paparriba à sombra duma faia de frondosa copa (patulae recubans sub tegmine fagi) e a suspirar de prazer com Tityreus: deus nobis haec otia fecit (deus fez para nós estes regalos). [1]
O que posso garantir, é que o Correio do Planalto me tem dado mais arrelias do que gostos e exigido sacrifícios e custos de lavoura muito superiores às colheitas.
Valeu a pena? Se eu fosse lido em Fernando Pessoa, responderia: «Tudo vale a pena se a alma não é pequena.» Como não sou, não sei responder. O que sei e sinto é que hoje a minha alma é muito mais pequena do que era em 1974. Comecei com D. Quixote de la Mancha, disposto a endireitar o mundo, e acabo com Voltaire, o qual, após uma longa vida a combater a estupidez humana, ironizava: «Afinal, deixo este mundo ainda mais estúpido do que o encontrei.»
E a propósito de estupidez humana, vou contar uma história.
Aí pela década de 1950, mais coisa menos coisa, apareceu em Montalegre um indivíduo precedido dum nome pomposo, cheio de ressonâncias históricas e bélicas. Bandeira de Toro, era o nome do homem – ignoro se de baptismo, se de guerra.
Apresentou-se ao Presidente da Câmara, na altura o Tenente Canedo, e propôs-lhe a publicação duma monografia do concelho. O Tenente aceitou, pôs-lhe um guia e um carro da Câmara às ordens, deu-lhe algum por conta, recomendações para todos os possíveis patrocinadores e esperanças duma boa gratificação, caso a obra lhe agradasse.
O Bandeira de Toro deu por aí umas voltas, deixou um lugar-tenente a recolher material e fundos, e foi pregar a outra freguesia. Antes, porém, para mostrar ao Presidente da Câmara, ao Barroso e ao mundo, que sabia escrever, botou soneto numa folha que, pela mesma altura, se publicava em Montalegre.
Glosava o dito soneto, por acaso de qualidade bastante duvidosa, o velho tema, já tratado pelos gregos, latinos, provençais, renascentistas, e todos os românticos de ontem e de hoje, dos namorados que se zangam e devolvem um ao outro os presentes recebidos. E aqui é que entra a chamada chave de oiro, no caso pendente, ferrugenta e de empréstimo: o namorado exige que a namorada lhe devolva os beijos.
Vai daí, os leitores da folha onde o pasticho vinha escarrapachado, em vez de acusarem o poeta de canhestro, coxo e plagiário, viraram-se contra o responsável da mesma por haver permitido a publicação de tal escandaleira: «Dois jovens a beijarem-se num soneto! Onde é que tal se viu? Mas então já não há respeito nem temor de Deus nesta terra? É preciso acabar com a pouca vergonha…» E o beatério de ambos os sexos tal alarido e pressão fez sobre as autoridades, que estas suspenderam a folha. [2]
Felizmente, neste particular, alguma coisa temos progredido. Hoje os jovens já não precisam de recorrer ao soneto para trocarem beijos imaginários. Trocam-nos em carne e osso na rua, à vista de toda a gente.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 34 e ss.)


[1] Virgílio – Éclogas.
[2] Lembro-me do episódio mas não estou em condições de garantir o nome da folha. Creio tratar-se duma «Separata do Estrela do Minho ao Serviço de Montalegre» ou, posteriormente, «Notícias de Barroso». Num caso ou noutro, o responsável devia ser o falecido José Taboada, o qual, a partir de 1955, dirigiu uma secção de «Notícias de Montalegre», no semanário «Noticias de Chaves».

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