terça-feira, 22 de outubro de 2013

O BOI DO PRÉMIO

Ontem o meu sobrinho, que está de férias, disse-me:
Amanhã é a Feira do Prémio.
– No meu tempo era em Junho!
– Passaram-na para Agosto.
– Por causa dos emigrantes?
Claro.
Anda tudo ao mesmo.
– O tio não vai lá?
Não me puxa o sangue.
Mas já me puxou, e de que maneira. Era uma festa, a Feira do Prémio. Indubitavelmente a mais concorrida e colorida do ano. Tudo à pata, num alevante, por aí fora, gentes e animais, velhos e novos, montes e vales, caminhos e atalhos, alor de romaria. “Para onde vais Maria?” “Para a festa!”
Nesse tempo, um primeiro lugar na Feira do Prémio correspondia a uma medalha de oiro nos Jogos Olímpicos. Aldeias e lavradores passavam a vida a suspirar por ele. Quem uma vez o abichasse, nunca mais era pobre. Pelo menos de presunção e água benta.
Da minha lembrança, Peireses teve apenas um boi-do-povo premiado. E, se o teve, a mim, em boa parte, o fica a dever.
Se um dia a epopeia desta Toscana se vier a fazer, espero que, por este sublime feito, os Virgílios indígenas se não esqueçam de incluir o meu nome entre os Eneias cá dos sítios. E como o seguro morreu de velho, apresso-me a registar para a posteridade esta bela página da história de Peireses e da minha obscura biografia.
Aí por 1939, era eu um pistolante de dente voraz, olho guicho e pé leve, a quem nada metia medo gaba-te cesta que vais para a vindima. Véspera da Feira do Prémio, um tio meu, ao tempo macho dominante entre os leões cá da terra, chamou-me de parte e disse-me:
Vais ali num instante à Vila e dizes ao Filipe Serralheiro que me inscreva o boi para amanhã. Vais assim mesmo, para ninguém desconfiar.
Assim mesmo, roto, sujo e descalço. Mas eu era, como disse, um pistolante de cara imberbe e desavergonhado. Corri a Montalegre, abordei o Filipe, vulgarmente conhecido por Filipe Carteiro, por ser este o seu ofício, e disse-lhe:
Ó sor Folipo? Meu tio António pede o favor de lhe inscrever o boi de Peireses para amanhã.
Ai tu és sobrinho do António Marinheiro? Filho do Manuel?
Sim senhor.
Está bem, rapaz. Diz ao teu tio que pode trazer o galhardo à vontade.
Cumprida esta missão, julguei-me fora da jogada. Mas não estava. Meu tio levou-me para a adega e, entre dois copos de maduro tinto e umas lascas de bacalhau cru, falou-me de homem para homem:
– Andam para aí uns merdas a quererem endireitar-se comigo, mas eu depressa lhos meto na virilha. Fiz uma proposta aos cabos para levarmos o boi ao prémio. E os tipos, só para me fazerem à raiva, disseram que não. Que o boi não está convenientemente tratado, que ainda é muito novo, que mais isto e aquilo. Mas eu, quando se me mete uma coisa na cabeça, vou com ela até ao fim, nem que para isso tenha de enfrentar o diabo mais velho.
E eu que o ajudo, tio! Conte comigo!
Por isso é que eu te convoquei. Toma atenção. Amanhã, ao nascer do sol, deitas as vacas para o lameiro do Crasto. Depois, lá para as oito, vais à Lama e dizes ao João Sapateiro que precisas do boi para o deitares a uma vaca. Fazes que o tocas para o Crasto e bates com ele em Montalegre.
Ohl, tio! Mas eu não vou para a feira neste aparato...
Não te aflijas. Eu levo-te uma camisa lavada e as alpergatas.
Isso já é outro falar.
O João Sapateiro era o pastor do boi. Entregou-mo sem qualquer desconfiança.
Quando irrompi Toural dentro, roto e descalço, varapau ao alto, boi à minha frente e tudo de boca aberta a olhar para mim, não garanto mas aposto, que nem um pavão me levaria a melhor em garbo e prosápia.
À entrada do recinto reservado aos concorrentes, um figuro de papel na mão perguntou-me donde era o boi, se estava inscrito, em nome de quem e outros quesitos. A tudo respondi com língua expedita.
– Toca para acolá – disse, indicando-me o lugar destinado aos bois.
Já lá estava uma meia dúzia deles, de rabo voltado para o arame da cerca e cornadura para o interior. Todos eles tinham mais do que um guarda. Foi o que me valeu senão o de Peireses armava logo ali zaragata. Ajudaram-me a colocá-lo no sítio.
Estava eu a coçar com o ponta do pau o boi entre os cornos para ele levantar a cabeça, vem de lá o ti Pires a espirrar fumo pelas ventas e grita-me:
Quem te autorizou a trazer o boi para aqui, rapaz?
– O meu tio.
Neste preparo?! E olha que tu também estás bem preparado, não haja dúvida... Mas que dois malucos...
Atrás do ti Pires, outros vizinhos vieram, dispostos a fazer e acontecer. Mas eu aguentei firme, vergueiro em esquadria.
O boi daqui não sai!
P teu tio?
Ele aí vem.
Meu tio que eu já lobrigara a vigiar-me de longe, aproximou-se, casaco pendente do ombro esquerdo, vara na mão direita, chapéu braguês atirado para a nuca, passo de quem sabe a terra que pisa. A vara era de marmelo. Cientes da facilidade com que ele a transformava em de escaha-pessegueiro, os contestatários recolheram a língua à bainha. Meu tio entregou-me um saquitel que trazia dissimulado debaixo do casaco e disse-me:
– Vai aí atrás duma parede e muda de roupa.
Quando me vi de camisa lavada e alpergatas espanholas nos pés, dei um pulo de contente e outro à Rua Direita, a qual, aos dias de feira, mais parecia um Mercado Persa. Perdi-me a olhar para as tendas e para as moças. Quando regressei ao recinto do prémio, atrás da Câmara, já o júri tinha avaliado os concorrentes.
– Então? – perguntei.
– Parece-me que estamos codilhados – respondeu meu tio.
– Porquê?
Está aí o boi da Vila e o Presidente da Câmara não larga o júri...
E meu tio não tirava os olhos da mesa. De repente disse-me:
– Tiremos daqui o boi. Anda lá à frente.
Nisto vem de lá o veterinário a correr:
– Ó Marinheiro? Ó Marinheiro? Um momento. Deixe estar o boi.
– O senhor doutor veja lá o que diz!
Deixe estar o boi, digo-lho eu.
Voltámos para o lugar. Reparei que a vara de marmeleiro tremia ligeiramente na mão de meu tio. “Ainda vai haver aqui mostarda” – disse para comigo. Felizmente não houve. O veterinário cumpriu a palavra. Peireses em primeiro lugar.
Como que por milagre, acorreu o ti Pires, e, com ele, todos os vizinhos:
Viva Peireses! Viva o Marinheiro!
Todo o júri veio cumprimentar meu tio.
– Agora, para tudo acabar em bem, vamos chegar os bois – propôs o Presidente da Câmara.
“O que tu queres é desforrar-te...» disse para com os meus botões.
Isso não depende só de mim. Tenho de ouvir os meus vizinhos respondeu meu tio.
O que o Marinheiro disser é o que eles fazem.
Claro que chegamos. Porque não havemos de chegar? acudiu o ti Pires, que não perdia ensejo de lamber as botas ao Presidente da Câmara. “Bem sabeis. A gente precisa dele...» desculpava-se o finório, que a sabia toda.
Meu tio declinava responsabilidades:
O boi deles é mais pesado. Vede lá no que vos ides meter...
Mas está velho, Marinheiro...
Isso também é verdade.
Portanto?
Seja o que Deus quiser.
A luta foi longa e renhida. Mas o de Peireses acabou por poder...
Por acaso, estava na feira o famoso acordeonista Lucindo de Travassos, recentemente chegado de Lisboa. Meu tio convidou-o para animar a festa do triunfo. Uma noite de vivas, vinho e bailarico. O Lucindo trazia com ele o Perim aos ferinhos e o Peladete no bombo. Lembro-me do Peladete, alta madrugada, perdido de bêbado, sentado numa cadeira, língua de fora, a zurzir no bombo e a mijar-se pelas pernas abaixo. Uma noite memorável.
Resta-me acrescentar que o boi a que me refiro era um a que nós chamávamos o Gralhas, por ser natural da aldeia homónima. Nesses heróicos tempos, para bois, burros e vinho, não havia como os de Gralhas.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 99 e ss.)

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