quinta-feira, 26 de julho de 2012

O riso das baleias

Quer ver baleias?
Nem esperou pela resposta. Fazendo dançar os dedos, o homem enunciava o preçário:
«Uma baleia são duzentos, duas são quatrocentos…»
Na realidade, ele não dizia exactamente assim. Transcrito à letra, soava antes assim: «Uma paleia são tuzendos…» Essa é a pronúncia macua do português, entoado com um mavioso e sedutor embalo.
O negócio ficou feito. Aliás, nas praias de Fernão Veloso, junto à cidade de Nacala, o negócio já está feito de antemão. Porque o visitante fica conquistado perante a beleza de uma das maiores baías do mundo. Os pescadores que se acumulam na praia estão demasiado ocupados com os seus assuntos. As redes de múltiplas cores parecem cumprir um fim mais estético que funcional. O destino de toda aquela agitação parece ser o de criar beleza. Sim, o negócio está já antecipadamente feito. Muito antes de entrarmos para o dow, embarcação árabe usada em todo o Norte de Moçambique. As velas foram costuradas e remendadas dezenas de vezes. Tantas quantas as monções. E aguardamos no barco, à espera que o pescador reúna uns tantos turistas mais para percorrer a baía. As baleias são um aliciante extra. Porque bastava a paisagem, os indescritíveis cenários em redor de Nacala. Não existe nome para a cor daquelas águas. Nem para dizer do branco das areias que a mão divina peneirou em todo o litoral.
No barco, aguardamos mais do que me agrada. Alguma coisa sucede na praia que faz demorar a tripulação. Sabemos do que se trata quando um deles faz uso de uma raiz para escovar os dentes. Estão-se preparando para as orações. Sapatos colocados à parte, como se houvesse uma invisível parede de mesquita, os pescadores se dobram em direcção a Meca.
A devoção com que se entregam às orações contrasta com a agitação que, ao mesmo tempo, anima a praia. Há barcos chegando de longe, de Memba, trazendo maçanica, galinhas, mandioca. Uma mulher oferece-me uma mão-cheia de maçanica. O sabor dos frutos me faz regressar à infância. Um grupo de jovens me acena com colares de missangas. São estudantes de manhã, vendedores à tarde. Mas já é tarde, já a embarcação se está fazendo à viagem. Quando o dow se adentra pelas águas, apercebemo-nos dos caprichos da configuração da baía que, em curta distância, afunda centenas de metros. A tonalidade da água acompanha a batometria: torna-se mais escura, de um azul mais grave e menos aberto à luz. E não tarda que um grito nos alerte:
«Vejam, as baleias!»
A excitação fez ver no plural. É apenas uma baleia. Parece exibir vaidades, emergindo com espalhafato bem próximo da nossa embarcação. O dow toma-se, subitamente, minúsculo. A baleia volta a saltar, afirmando o seu domínio sobre os mares. O pescador ao leme faz-me sinal a lembrar o combinado:
«Já mudou de preço: são mais duzentos!»
Confirmo com um acenar de cabeça. Qualquer coisa me diz que dispenso mais encontros com as baleias. Será porque não sei nadar? E aponto a outra margem, sugerindo que o barco à vela se desloque no sentido oposto ao da cidade. Não tarda que se abra a nossos olhos um desses lugares que ainda guarda a tranquilidade do princípio do mundo. Os mangais ali ocorrem no fundo límpido, em transparências poucos usuais. Aqueles que conheço instalaram-se todos em lodos sujos e águas barrentas. Mas aqui tudo parece lavado pela luz.
Parte dos turistas toma banho, outros se ocupam a apanhar conchas e búzios. O meu afazer é não me ocupar de nada. A minha felicidade é perder pensamento, deixar-me ocupar por aquela leveza, esquecendo-me de que, perto, existe algo chamado «realidade». As garças cinzentas passam com lentidão de barco e parecem dar-me razão: o paraíso não é um lugar, é um breve momento que conquistamos dentro de nós. É a hora do regresso. Escolhemos o fim da tarde, sabedores do encanto dos poentes naquela baía. Observo os turistas e noto o encantamento no seu rosto. Estão calados, encostados à amurada do dow, olhar flutuando no horizonte. Há no seu silêncio uma espécie de oração, não muito diversa daquela que fez os pescadores cabecear na praia.
Aproximo-me do chefe da embarcação e, vencendo o receio de ser mal-entendido, pergunto:
– Acha que ainda veremos mais baleias?
– A esta hora já não circulam. Só na parte da manhã…
Quase suspiro de alívio. E me envergonho: como posso recuar perante o poderoso fascínio que os grandes animais provocam em mim? Um dia destes tenho que aprender a nadar. Ou terei que nascer de novo. De repente, uma sombra gigante irrompe das águas. É uma baleia. Diverte-se em enormes saltos, chapinhando sobre as ondas. Não sei se é ela, a baleia, que se ri, se sou eu que amarelo um sorriso quando o pescador me avisa:
– São mais duzentos. Ou melhor, mais trezentos, que agora ela está a fazer horas extraordinárias!
(Abril de 2004)
Mia Couto

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