Traduzir
Escrever é
traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria
língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos (supondo que o ver e
o sentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais que as palavras
com o que nos vem sendo relativamente possível expressar o visto e o sentido...)
para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias
e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência
do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir
(inevitavelmente parcelar em relação à realidade de que se havia alimentado),
mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser
intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de
uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai
ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo.
O trabalho de
quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu
próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido «tradução»,
isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica,
ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção,
num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto
original representa unicamente uma das «traduções» possíveis da experiência da
realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o «texto-tradução»
em «tradução-texto», inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter
começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o
tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado
linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de
traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para
onde vai. Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois
como o limiar de uma passagem «alquímica» em que o que é precisa de se
transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O
diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o
texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que
hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que
devem reconhecer-se.
José Saramago, O CADERNO
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