quarta-feira, 22 de junho de 2011

A ARCA DE NOÉ E O BURRO

Nestes últimos dias, muito me tenho lembrado do patriarca Noé e da sua famosa Arca. É que isto parece mesmo um segundo Dilúvio Universal.
Segundo a Bíblia, aquando do primeiro, choveu durante quarenta dias e quarenta noites.
Neste fim dum século e princípio doutro, parece que chove há uma eternidade.
Por isso eu me tenho lembrado de Noé.
Mas não é só por causa da sua famosa Arca que eu me tenho lembrado dele.
É também porque, e ainda segundo a Bíblia, Noé foi o primeiro homem do mundo a cultivar e a beber vinho, o tal que (e invoco de novo o livro Sagrado) cor homini laetificat.
Alegra o coração do homem e ajuda a passar os dias de chuva à lareira, entre dois dedos de conversa e outros dois de maduro tinto, bebido directamente da pota de barro preto, depois de lhe ter quebrado a friúra ao calor dos tições.
A Bíblia não o diz expressamente, mas é de supor que Noé matasse o seu porquito.
Eu, por acaso, matei. E aprecio sobremaneira uma chouriça embrulhada numa folha de couve e metida entre as brasas.
É uma espécie de reacção em cadeia. A chouriça puxa pelo vinho, o vinho solta a língua.
Ora foi precisamente num desses momentos de língua mais expedita que eu, decerto por não ter mais nada que dizer, evoquei o caso do burro que traiu o dono.
Passou-se a coisa desta maneira.
Uma noite, era eu garoto, levantei-me da cama para ir ao quarto de banho, que é como quem diz, ao pátio. Nisto, ouço zurrar um burro na eira.
Acordei o meu pai: «Está um burro na eira...» «Na eira?» «Sim.» «Estás maluquinho...» «Ouça.» Lá estava outra vez o burro a zurrar.
Meu pai acordou o meu tio: «Compadre?» «Diga.» «Está um burro na eira. Que lhe parece?» «Algum burro vadio.» «E se fôssemos ver?» «Vamos».
Lá fomos, com as cautelas devidas, a contar com um burro vadio.
Mas o raio do burro, por sinal um lázaro que envergonharia um cigano, estava albardado e preso atrás do palheiro.
«Antolhou-se-me ver uma luz no telhão..." – segredei.
«Ficai aí» – e o meu tio, pistola em riste, avançou, pé ante pé, cosido com a parede.
Que havia de ser? Um vulgar ratoneiro a ensacar batatas à luz dum foque.
Meu irmão Manuel, que me escutava e se ria, comentou:
– Esse não era dos lados de Vilar de Perdizes.
– Porquê?
– Se o fosse, sabia como é que se faz para um burro não zurrar.
– Então como é?
– Prende-se-lhe uma pedra ao rabo. Um burro, não levantando o rabo, não zurra.
As coisas que a gente aprende à lareira, em dias de chuva, entre dois dedos de vinho e outros dois de conversa...
 Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 117 e s.)

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