Renascer!...
segunda-feira, 14 de março de 2016
Renascer ou findar?
Renascer, sem nascer de novo ou rejuvenescer? Ou findar, finalizar, acabar, terminar? Os anos que já temos de vida estabelecem-nos o segundo...
sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
Tratado das paixões da alma
António Lobo Antunes - 21.01.2016 às 8h00
Pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto
E agora, dona Fernanda? O seu marido morreu, o seu cão morreu, o seu filho vive na Suíça e não atende o telefone, a sua amiga Prazeres cortou relações consigo, convencida que a senhora andava a catrapiscar-lhe o marido, o médico não pára de avisá-la
- Atenção às gorduras
a desenhar círculos à volta dos resultados das análises, tirando os óculos no fim para suspirar melhor, a bater com a ponta da esferográfica num dos números
- Ai dona Fernanda, dona Fernanda
competente, amável, preocupado, por acaso viúvo também visto que duas alianças juntinhas num dedo e a roupa descuidada, às vezes com nódoas que nenhuma esposa consentiria, sem mencionar a falta de graxa nos sapatos, a senhora com vontade de responder-lhe
- Ai senhor doutor, senhor doutor
ao olhar-lhe as biqueiras, um homem não muito velho, nem sequer feio por acaso, que, a avaliar pelas pestanas, deve ter sido um bebé lindo antes de se transformar num adulto assim assim, um aperto de mão à entrada, um aperto de mão à saída acompanhado pelas palavras
- Ali ao balcão marque para outubro
já quando a senhora, dona Fernanda, a agarrar no puxador lembra-lhe as gorduras
- Cuidado com isso
a senhora a pensar que se fosse a médica e ele o doente lhe receitava uma bisnaga de graxa e um pano para avivar o brilho ao cabedal, uma das empregadas do balcão, a folhear outubro na agenda
-Tenho dia onze e dia vinte e sete, dona Fernanda
com anéis exuberantes, desses que se compram no metro a sujeitos acocorados num banquinho diante de um pano sujo, cheio de preciosidades de pataco, a senhora, dona Fernanda, a contemplar o que ela usava no indicador direito, um girassol de plástico enorme tapando-lhe o dedo todo
- Dia onze está certo
enquanto se imaginava com um anel idêntico
- Como é que me ficaria?
e ficaria bem, pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto, a perguntar ao empregado o seu nome, talvez que o sujeito a ganhar coragem para vir ter consigo
- Dá-me licença?
e a senhora lhe aceitasse a companhia recuando uma das três cadeiras que sobravam na sua mesa, dona Fernanda, talvez aceitasse também um novo encontro para o dia seguinte, talvez, mesmo, o deixasse pagar-lhe o chá dado que apesar de barato todos os cêntimos contam e a pensão do seu marido acanhada, uma sopinha e uma maçã ao jantar e pronto, um arrozito com um terço de uma lata de atum ao almoço e entre o almoço e o jantar o luxo do chazinho, a senhora para a empregada das consultas, depois dela lhe entregar o cartão de utente com o dia onze de outubro escrito debaixo do dia vinte e seis de março de hoje
- Desculpe o atrevimento mas importa-se de me dizer onde comprou o anel do girassol?
confirmando que a um marroquino do metro a quem tinham acabado os girassóis mas não os alfinetes doirados com uma pantera pronta a saltar, ideal para a gola do casaco na qual se espetava com um alfinete, experimentou ao espelho e sentiu-se melhor com aquilo, alegrava-lhe a roupa, alegrava-lhe as feições, o sujeito do cálice, respeitoso
- Não me leve a mal dizer isto mas de pantera parece uma actriz
e a senhora, dona Fernanda, não lhe levou a mal, a senhora, dona Fernanda, contente, a senhora, dona Fernanda, quase a sorrir, a senhora, dona Fernanda, a sorrir, a senhora, dona Fernanda
- Muito obrigada
a inchar na blusa, o sujeito, lisonjeiro
- Olhe que estou a ser completamente sincero
passando o indicador, ao de leve, no bicho, por si, dona Fernanda, até podia ter carregado um bocadinho, o sujeito funcionário público
- Sou funcionário público
num ministério ou assim, pareceu-lhe que um ministério, o sujeito contínuo num ministério, tão educado
- Vemo-nos amanhã?
a pagar-lhe de novo o chá, a senhora, dona Fernanda, coquete
- Quem sabe?
mas a dizer que sim com a cabeça, isto é a cabeça, independente de si, autónoma
- Sim
a sua boca, independente de si, autónoma
- Claro que sim
e a senhora, dona Fernanda, feliz que tudo nela lhe escapasse, a aquecer a sopinha no fogão apercebendo-se que cantarolava, apercebendo-se que as duas assoalhadas mais bonitas, apercebendo-se que o sofá aguentava apesar do marido da dona Prazeres, que cortou relações consigo por supor, injustamente, que a senhora, dona Fernanda, o catrapiscava, a garantir que era difícil abraçá-la numa coisa com uma das pernas meio solta, não cessando de avisar
- Vou cair.
domingo, 17 de janeiro de 2016
Opinião de...
António Bagão Félix: ALEX
Alexandra Lucas Coelho: Thank you, Mr. Bowie (precisávamos de toda essa gente)
Frei Bento Domingues O.P.: Com quem começar o novo ano (III)
Jorge Almeida Fernandes: Polónia, democracia, Europa
Vasco Pulido Valente: À nossa porta
José Manuel Meirim: Olá senhor secretário de Estado
sábado, 16 de janeiro de 2016
Derrota ideológica e vitória política
Opinião
Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser
um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco
mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.
Uma coisa a esquerda deve compreender com toda a clareza: a direita
venceu a batalha ideológica nos últimos anos. Mais: essa vitória tem
profundas repercussões nos anos futuros e molda a opinião pública. É uma
vitória muito perigosa e pegajosa, porque se coloca no terreno daquilo
que os sociólogos chamam “background assumptions”, molda o
nosso pensamento sem trazer assinatura, parece a “realidade” quando é
uma construção ideológica. No entanto, convém não confundir duas coisas
distintas, a ideologia e política. E a direita perdeu a batalha
política, o que ajuda a ocultar a sua vitória ideológica. O problema é
que a solidez da vitória ideológica é maior do que a solidez da vitória
política.
Para começar, obrigou-me a contragosto a ter que retomar
uma linguagem esquerda-direita, que de há muito penso estar
ultrapassada e ter mais equívocos do que vantagens. Sim, já sei, conheço
a frase de Alain sobre que quem pensa que não é de esquerda nem de
direita é de direita, mas hoje a frase oculta mais do que revela.
Considero
este retorno a um quadro de dualidades, que só pode ser usado numa
perspectiva histórica ou sentimental, um dos estragos mais recentes
sobre possibilidade de se sair de uma política do passado. Pode servir
para dar identidade, mas explica cada vez menos o que se passa. Um
exemplo, é a crítica ao consumismo oriunda da esquerda que preparou o
terreno e encaixou perfeitamente na crítica da direita ao “viver acima
das suas posses”, em ambos os casos centrando-se na culpabilização dos
consumos típicos da classe média. Mais do que de esquerda e direita,
estas posições são socialmente reaccionárias.
Num país em que a
construção de uma classe média é recente e traz consigo uma nova
liberdade face à pobreza e à memória recente da pobreza, isso significa
pôr em causa muitos aspectos do mecanismo de elevador social e abre
caminho, por exemplo, à negação de que a educação possa ser um elemento
fundamental dessa ascensão social. Alguns autores usam a crítica à
ideologia republicana da “escola” para pôr em causa aquilo a que chamam o
“mito” da educação.
A verdade é que em termos ideológicos, e
também em termos políticos, passámos do cinema para a lanterna mágica.
Andámos para trás, e isso acontece mais vezes do que aquilo que se
deseja. Com a experiência de um Tea Party à portuguesa, ficamos
“liberais” à americana. Por isso, lá tive, a contragosto e moendo-me
todo, que voltar a falar a linguagem paupérrima da dualidade
esquerda-direita.
Este retorno ao dualismo esquerda-direita foi
uma vitória do PP de Monteiro-Portas e do Bloco de Esquerda. A sua
vítima foi o centro político e o antigo PSD reformista. Ver o PSD de
Passos e seus amigos a aceitar com toda a naturalidade serem
classificados de direita, foi uma ruptura clara e explícita com o PSD de
Sá Carneiro. Do outro lado, o PS evitou cuidadosamente auto nomear-se
de esquerda, como se a palavra tivesse sarna, já para não dizer que os
diminuía face aos seus novos amigos da banca e dos negócios nos últimos
anos. A “terceira via” foi o caminho. Renderam-se todos aos “mercados”
como Deus ex machina da política e isso desarmou-os ideologicamente.
Por
isso, todo o espectro político está puxado à direita e, por reflexo,
deixou apenas franjas na esquerda. As verdadeiras fracturas são hoje de
outro tipo e não ganham nada em serem pensadas na dicotomia
esquerda-direita. O caso mais flagrante é a questão da democracia e
soberania, a perda de poderes do voto dos portugueses, cujo parlamento
não tem capacidade orçamental, e a entrega à burocracia transnacional de
Bruxelas dos principais instrumentos de governação de um país que era
suposto ser independente, ou seja, é mais importante a posição face à
“Europa”. E aqui a divisão esquerda-direita não é fácil de fazer.
Mais
relevante para perceber o que se passou é ver como o programa social
virou parte do centro e da direita para o radicalismo e puxou parte da
esquerda para ocupar esse centro. Será que a esquerda não se interroga
se muitas das medidas que hoje enuncia como sendo o supra-sumo da
esquerda, como seja a reposição de salários e pensões, não são
propriamente de esquerda, e só se tornaram de esquerda pela
radicalização da direita? Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que
hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva
ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou
democrata-cristão.
Ainda recentemente ouvi com atenção uma
intervenção de Marisa Matias fazendo para mim uma classificação interior
daquilo que era ideologicamente de esquerda e, com excepção da questão
das privatizações versus nacionalizações, tudo era da mais pacífica
doutrina social da igreja, podia ser dito pela Caritas, por um democrata
cristão ou um social-democrata se ainda os houvesse. Até o Papa
Francisco, nestes termos, estaria muito mais à esquerda.
O mal é
da Marisa Matias? Não, é de nos termos deixado enredar numa confusão
entre o interlocutor e o conteúdo da interlocução. Por isso, exames,
pensões, reformas, feriados, tudo passou a ser não apenas de esquerda,
mas do radicalismo de esquerda, apenas porque só partidos que se
auto-classificam de esquerda o fazem. Aceitar que alguém diga isto sem
um atestado de ignorância ou uma gargalhada mostra a nossa pauperização
política e ideológica.
É por isso que um deputado do ex-PaF se
dizia muito surpreendido por o Bloco de Esquerda defender o feriado do
Corpo de Deus, sem perceber que o problema é ele ter colocado uma
vulgata do “economês” acima de um dia em que se reza ao divino e em que a
Igreja quer que as mundanais preocupações dêem lugar à fé. O que se
passou é que a radicalização da direita deixou um terreno vazio ao
centro que faz com que uma esquerda moderadíssima pareça o bolchevique
com uma faca entre os dentes.
A aceitação de que a classificação
política dos outros seja feita pela direita radical, coisa que a ala
direita do PS interiorizou completamente, é um dos aspectos dessa
vitória ideológica. A direita mais radical interiorizou em muitos
portugueses um modo de pensar, uma maneira de defrontar os problemas,
uma forma de questionar, uma interpretação da vida social, da economia,
do estado, que é de facção, mas que muitos aceitam sem questionar.
O
esplendor dessa vitória ideológica surge quando um qualquer jornalista
puxa do coldre a pergunta “quanto custa?” e “quem paga?”, sempre que se
fala de salários, pensões, reformas, diminuição dos horários de
trabalhos, qualquer coisa que diga respeito ao mundo do trabalho e não
faz o mesmo em todas as outras circunstâncias. Já viram um jornalista
confrontar um gestor ou um empresário com a pergunta de “quem paga?” e
“quanto custam’” os erros de gestão, a falta de competitividade das
empresas devida à má qualidade dos seus empresários, a fuga ao fisco
“legal”, etc?
Já viram um jornalista, com a mesma imediaticidade
pavloviana do “quem paga?”, perguntar a um banqueiro se ele acha justo
que os erros de gestão da banca tenham que ser pagos pelos
contribuintes? Não, porque o jornalista já deu na sua cabeça a resposta
ideológica, “é preciso salvar o sistema financeiro”.
Por que razão
não há sanção moral pública com as muitas pessoas com riqueza acima de
um milhão de euros que estão a fazer à pressa doações para escapar à
eventualidade de o governo PS criar um imposto sucessório, ao mesmo
tempo que não perdem oportunidade de penalizarem moralmente os mandriões
dos trabalhadores dos transportes?
É isto a fractura entre a
esquerda e direita? Não, é uma fractura que um homem ou mulher honesto,
podem colocar noutras palavras como seja a decência. Se admitirmos que
há “bom senso” no pensamento, então também podemos admitir que o “bom
senso” da ética é a decência.
Recoloquemos aí muito daquilo que é
hoje uma falsa fractura ideológica, não porque isso seja um limbo
ideológico, mas porque essa recolocação ajuda a limpar o terreno. Depois
podemos partir para as fracturas ideológicas do passado, que conhecemos
como de esquerda e direita e analisá-las e teremos algumas surpresas
pela inversão de alguns papéis. E depois podemos voltar ao limbo inicial
para ver se ele subsiste para além de um sistema de valores e se o
podemos arrumar de outro modo, limpando-o da superioridade moral que
acarreta o uso de valores em política. Para combater a ideologia da
direita radical precisamos de algum retorno à moralidade, como os
espanhóis compreenderam com as suas “marchas pela dignidade”, e depois
então vamos à política pura e dura para nos desentendermos, a boa coisa
do debate em democracia e liberdade.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
Opinião de...
- Baptista Bastos: A livraria Lello como se subisse para o Olimpo
- Vasco Pulido Valente: Desgraças
- Francisco Teixeira da Mota: Enorme generosidade ou pequena loucura?
- Rui Vieira Nery: A cultura em estado de emergência
quarta-feira, 25 de junho de 2014
NINGUÉM AS VESTE QUE AS NÃO BORRE...
Após
um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República
Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.
Brumário
por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os
dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que,
outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.
O
medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos,
na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas
vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.
A
mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.
Um
dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos
os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra
cão!»
Por
vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em
diagonal, direito à serra.
Eu,
em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim,
nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui
dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.
—
O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.
E
o Avô, que era muito divertido, respondeu:
—
Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?
—
Não.
—
Repara.
E
o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga
do braço direito, exemplificou:
—
Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de
dentro para fora.
No
dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!»
vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:
—
Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?
Doutra
feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês.
Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além
dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o
Barrolo:
—
Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.
E
mete a correr, pau no ar e goelas abertas:
— Chiba aí ei... ei... i.
Ainda
mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no
ar, olhos esbugalhados, boca aberta.
—
Que foi, Barrolo? Viste lobo?
Ele
abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago
de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.
—
Levou-te algum richelo?
Numa
voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:
—
Uma ovelha!
—
Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?
—
Que é que tu lhe fazias?
Eu
exemplifiquei a manobra do Avô:
—
Virava-o com o de dentro para fora.
—
Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.
Olhei
para ele com mais atenção:
—
Não me digas que borraste as calças?
—
Ó Marinheiro?
Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...
—
Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que
as não borre... É
dos
livros.»
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 128 e s.)
sábado, 21 de junho de 2014
Coimbra, 20 de Junho de 1978.
ARQUIVO
Tão baço o teu retrato
No álbum da lembrança!
Que vaga semelhança
Entre a imagem que vejo
E a dor que sinto!
Minto
Se te disser
Que te desejo ainda,
Que o meu instinto
Te reconhece e quer.
E sei que um dia me perdi
Em ti
Como se perde o homem na mulher.
Miguel Torga, DIÁRIO XIII
sábado, 14 de junho de 2014
OS MEUS MORTOS
Durante
grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e
incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à
porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
Quando somos
jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a
morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre
antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando,
à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma
explicação, não uma razão.
A mãe de
minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje,
porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus
o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o
mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e
desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois
disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez,
fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
Antes de
morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio
escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre
coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte
chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a
carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes
de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele
esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer
com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus
nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora
o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel
Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente
lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los?
Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E,
contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de
uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os
anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei.
Há de facto
na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu,
tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel
Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava
lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e
pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus
mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios,
incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a
minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora
de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois,
junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.
Visão, 14/06/2001
Manuel António Pina
quinta-feira, 5 de junho de 2014
TRÊS COELHOS DUMA CAJATADA
Quando
um homem está a contar com uma coisa e lhe sai outra, fica sempre desconsolado.
Foi o que aconteceu comigo nesta quadra natalícia. Estava a contar com neve.
Afinal, o céu teimou em manter-se limpo, o sol a brilhar, a geada a cair. Uma espécie
de Janeiro antecipado. Nos meus tempos de garoto, dias destes, só a partir do
Ano Novo. Era então que o sol se tornava álgido, a lua altaneira, as geadas de
palmo.
Foi
por dias desses que eu aprendi a patinar no gelo. Nos lameiros onde eu guardava
as vacas, nessa época do ano sempre encharcados, formavam-se grandes lagos de
carambelo, verdadeiras tentações para umas acrobacias de patinagem artística,
as quais, no meu caso, não tinham arte nenhuma. Aquilo era tombo que te parte,
com grandes mossas no esqueleto, dum modo particular nas partes mais salientes,
género cóccix e cotovelos. Por amor ao esqueleto, mudei de táctica. Em vez de
esqui, passei a fazer escu. Consistia ele em cavalgar molhos de urzes ou
giestas e descer as encostas vidradas a grande velocidade, rédea firme, tronco
inclinado para trás, pernas em estradiota, goelas abertas, numa atitude
selvagem, nem mais nem menos ridícula do que aquela que mais tarde vi fazer a
pessoas mais civilizadas na montanha russa da Feira popular de Lisboa.
A
brincadeira valeu-me alguns rasgões nos fundilhos, outras tantas bofetadas de
minha mãe e ordens expressas de meu pai para me deixar de cavalgadas no gelo. E
dado que meu pai não era de brincadeiras, eu passei a esconder-me para as
fazer. Ia lá para uma touça com uma fonte e uma lameira em plano inclinado, sempre
coberta de gelo e tão recatada entre urzeiras como o toucador duma gueixa entre
biombos. Era aí que eu cavalgava matões a meu bel-prazer e à rédea solta.
Ora
uma tarde em que eu me entregava ao meu desporto favorito e proibido, sai-me
dentre as urzes o meu cão com um coelho na boca. Isto não teria nada de anormal
se, atrás do coelho, não viesse uma ratoeira a rastos. Recolhi o coelho ao
bornal, fiz umas festas ao Dezoito, que assim se chamava o cão,
atirei com a ratoeira à lura dum carvalho antigo e com o assunto para trás das
costas.
Era
isto a um domingo e eu aluno da quarta classe. Vim para casa, meti as vacas,
ceei mais cedo e fui dormir a S. Vicente, onde, segunda-feira, a professora
exigia a nossa presença logo ao romper o dia. À hora
do recreio, estava o meu vizinho Joaquim do Fontenova, praça velha, direito
comigo. Pelos vistos, a ratoeira era dele. Neguei, claro.
—
Ai sim? E onde foste tu pelo coelho que ontem trouxeste para casa?
—
Agarrou-o o meu Dezoito.
—
Na minha ratoeira?
—
Não vi ratoeira nenhuma, já te disse!
—
Acuso-te à professora.
—
Acusa. Quero lá saber.
Nesta
altura da discussão já estávamos rodeados por todos os alunos das quatro
classes e uma boa parte dos vizinhos de S. Vicente. E até o senhor abade, que
regressava do passal de cabeção, batina, tamancos e sacho às costas, quis saber
que galega parira ali? Inteirado, pôs aquela cara de bondade e riso que era a
dele e disse:
—
Vá. Ide à vossa vida. Deixai-me aqui só com o Fontenova e o Marinheiro que lhes
quero um segredo.
A
malta dispersou. O pároco voltou-se para o Fontenova e inquiriu:
—
Quantos coelhos tens em casa?
—
Um.
—
Não. Tu, às ratoeiras que armas todas as noites, deves ter mais?
—
Bem. Se o senhor abade tem alguma incumbência, podem-se arranjar mais alguns.
—
Quantos?
—
Uns quatro ou cinco.
—
Preciso apenas de dois.
—
Onde quer que lhos deixe?
—
Entrega-los aqui ao Marinheiro.
—
Para quê?!
—
Ele te dizer onde está a ratoeira.
—
E o senhor abade fica por ele? — atalhei eu a rir-me.
Ele
ameaçou-me com um tabefe:
—
Anda, que tu és malandro, mas desta já eu te safei.
No
domingo seguinte, estando eu no adro entre um ror de rapazes e homens à espera
do toque de entrada para a missa, vem de lá o Faia de Travassos, sempre pantomineiro,
bate-me duas palmadinhas nas costas e exclama:
—
Ora aqui está o homem que matou três coelhos duma cajatada...
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 122 e ss.)
Coimbra, 5 de Junho de 1978.
ADEUS
É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.
Miguel Torga
quarta-feira, 21 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
um homem sorri a morte -com meia cara
JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS
um homem
sorri a morte
-com meia cara
sorri a morte
-com meia cara
Editorial Estampa
IN MEMORIAM
DO
DOUTOR FRANCISCO PULIDO
VALENTE,
mestre
de médico e de homem,
E DO
DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,
grande
coração ao serviço das almas
J. R. M.
Ao
traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia
reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor
falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e
sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num
meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de
confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas,
usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não
dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a
crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions;
de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera
gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição,
quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de
Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do
piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da
pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um
enigma que empolga os homens.
Mas,
independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não
é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência
pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos
demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos
secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira
mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e
pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e
da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino
pessoal.
Sim,
foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do
fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber
como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para
aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei
pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a
dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos
e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema
pessoal se apaga e some.
Que
escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com
objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se
desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos
preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e
campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem
se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O
que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do
indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar
para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a
ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se,
ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com
profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da
medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria
de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe
tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer
dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de
epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua
presença.
J.R.M.
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Coimbra, 15 de Maio de 1979.
UM POEMA DE AMOR
É um poema de amor.
Começa num sorriso promissor
E acaba num soluço
De saudade.
Entre essas duas margens,
Um rio de silêncio.
Um rio largo, onde se espelha, baça,
A paisagem severa de uma vida,
A que faltou a graça
Dessa remota hora repetida.
MIGUEL TORGA – DIÁRIO XIII
quarta-feira, 7 de maio de 2014
SE TE NÃO PODES DESFAZER DOS INIMIGOS, JUNTA-TE A ELES
Se
os dias, como os substantivos, se classificassem pelo género, incluiria o de
hoje entre os neutros. De manhã choveu e de tarde fez sol. Embora não seja
homem de grandes afazeres, só pela noitinha pude sair de casa. O Outono está
quase no fim, as árvores quase nuas e os caminhos atapetados de folhas. Gosto de
as sentir debaixo dos pés. Criam-me a ilusão de passear por sobre as alfombras
das salas, corredores e jardins privativos do sultanesco palácio que um dia o
génio da lâmpada de Aladino me prometeu e até hoje ainda não cumpriu.
A
quinhentos metros da aldeia, caí na solidão absoluta. Apenas um leve pipilar de
aves que dir-se-ia vir ou fazer parte da terra. O poente enrubescia e a lua
navegava alta por entre nuvens cor de chocolate com pinceladas laranja. Um fim
de tarde de pastores enamorados, cavaleiros andantes, menestréis a dedilhar a
tiorba e princesas elanguescidas ao balcão.
Vinha
já de regresso, a pensar na morte da bezerra ou na minha, já me não lembro,
surge-me pelas costas o Anacleto.
—
Que andas por aqui a fazer a esta hora? — perguntou.
—
Nada que me envergonhe. E tu?
—
Venho ali do lameiro. E sabes o que fui lá fazer?
—
Tornar a água.
—
Mandinga aos porcos-bravos.
—
Algum laço?
—
Roupa velha.
— Restos de comida? É isso?
—
Não.
—
Homem explica-te por uma vez.
—
Os tipos levam-me o lameiro virado. Vêm ao vezo dos niscros e da bolota e viram
tudo. Se eu lá esconder umas peças de roupa usada, os gajos cheira-lhes a homem
e fogem.
—
Ora aí está um truque que eu desconhecia.
—
Ficas a saber.
—
Por falar em porcos. Já mataste?
—
Eu agora já não mato. Os filhos estão todos para a França. A mulher não come
carne de porco. Eu também não.
—
Não gostas?
—
Gostar, gosto. Mas o médico proibiu-ma. E olha que bem saudades tenho das
matanças de antigamente. Aquilo é que eram festas! Ainda me lembro da primeira
vez que matei. Como sabes, eu era um criado de servir. Não tinha onde cair
morto, como se costuma dizer. Mas era apaixonadiço, namorei a minha Rosa e não
tive outro remédio se não casar com ela. Fomos viver para uma corte cedida de
esmola pela Viúva, boa mulher, Deus a tenha em bom lugar, que bem o mereceu. O
espaço não era muito, mas a minha Rosa tanto insistiu que eu improvisei lá um
cortelho para ela criar um reco. À força de leitugas e labrestos apanhados por
esses lameiros de pasto e terras de centeio, castanhas, bolotas e batatas do
rebusco, erva dessas bordas e o suprimento dumas malgas de grão e outras de
farelo mendigadas pela minha Rosa por casa das lavradeiras a quem ajudava nas
lides de casa, pudemos chegar ao São Martinho em condições de matar o
nosso porquinho. Convidámos os meus sogros e quatro amigos para a
matança. Fizemos tudo o que havia a fazer da parte da manhã e, ao meio-dia,
estávamos à mesa. Julguei que os tipos, barba untada, barriga cheia, se fossem
embora. Mas não. Só os meus sogros é que se retiraram. Os outros quatro
puseram-se a jogar as cartas. Veio a merenda, veio a ceia, e os tipos não
largavam. Acabaram-se as filhós de sangue, o sarrabulho, a coiracha, o fígado,
os rins, o gorgomilo, tudo o que era do dia, e os tipos sempre a reclamar:
«Então não há mais nada que se coma?» Comecei a desmanchar no porco. Lá para a meia-noite, rosnei ao ouvido
da minha Rosa: «Vamo-nos deitar a ver se os alarves ganham vergonha e se vão
embora.» E depois, em voz alta: «Bem, rapazes, desculpai lá, mas eu e a Rosa vamo-nos
deitar.» «Ide. Ide, que nós cá nos arranjamos» — respondeu o que embaralhava. A
minha Rosa, coitada, morta de fadiga, adormeceu logo. Mas eu não havia maneira
de pregar olho. De golpe, saltei da cama, fui para junto deles e toca a dar ao
dente... Não carai... E com esta me vou. Até logo.
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 122 e ss.)
sexta-feira, 18 de abril de 2014
O PÉ DESCALÇO
Há
dias, estando eu a arrumar uns livros na estante, deparei com um datado de 1956
e o seguinte título: «O PÉ DESCALÇO — Uma Vergonha Nacional que Urge Extirpar».
Fiz com ele o que as máquinas de contar dinheiro fazem com as notas de cem euros.
Premi-o de encontro ao dedo e deixei deslizar as páginas. O suficiente para
ficar a saber que, à data do meu nascimento, dois terços dos portugueses
andavam descalços. E que, em 1928, a «Liga Portuguesa de Profilaxia Social»,
com sede no Porto, lançou uma campanha com o título supracitado.
Os
argumentos eram de peso. Que «só em 1927 foram socorridas na Cruz Vermelha da
Cidade Invicta, 600 pessoas com ferimentos nos pés», grande número das quais
veio a morrer de tétano.
Que
o vergonhoso hábito de andar descalço estava tão arreigado, que se viam
raparigas com boas roupas, cordões de oiro ao pescoço e arrecadas nas orelhas e
os pés nus. O mesmo nos rapazes. Bons fatos, gravata, correntes com grilhão no
colete e pata ao léu.
Que
o grande número de pessoas descalças por essas ruas e praças causava espanto e
comentários desagradáveis nos estrangeiros que nos visitavam. Que só em
Portugal e na África se viam coisas destas. Guerra ao pé descalço.
Lentamente,
como quem rola um penedo encosta arriba, a «Liga» foi levando a cruz ao
Calvário. Primeiro o governador civil do Porto, depois o de Lisboa, a seguir o
de Coimbra, proibiram, sob pena de multa e cadeia, o pé descalço na rua. Os
tribunais começaram a ficar entupidos com tanta gente levada a juízo. E o mais estranho
é que, pelos relatos desses julgamentos, ficamos a saber que nas grandes
cidades se andava descalço durante todo o ano.
Eu,
por acaso, só andava descalço no Verão. Para o Inverno sempre havia uns
tamancos amanhados pelo meu pai, a quem a necessidade obrigava às mais variadas
artes, entre elas a de soqueiro. E francamente lhes digo que até gostava de
andar descalço. Ao arrepio da sensação de grilheta causada pelo tamanco, a pata
ao léu transmitia-me na rua, nos caminhos e nos montes, a sensação de leveza e
graciosidade dum bailarino no palco. Só não gostava de duas coisas. Esborrachar
o dedo grande de encontro às pedras e abrir gretas nas pregas interdigitais. Já
viram o que era andar sobre lameiros de feno cortados de fresco? Os caules,
rijos e feros como as cerdas da escova de ferro com que o Tomé da Volta,
picador de burros afamado, almofaçava o fouveiro, enfiavam-se-me pelas gretas e
punham-me a dançar o saricoté num só pé. Valia-me então uma
vizinha de porta a quem eu suplicava que me fizesse chichi nos pés. Ardia mas
aliviava.
Chamava-se
ela Marcelina e era dada na cédula de nascimento como nascida no mesmo ano que
eu, e filha de pai incógnito e da cabaneira Ana
Garcia, mais conhecida por Descalça.
Esta
Descalça tinha apenas a casita, um hortejo, meia dúzia de galinhas e uma
burra parideira.
As
galinhas andavam por aí à vontade. A burra apascentava-a a filha pelos baldios
da povoação. Eu, na altura pastor de vacas, repartia com ela a merenda e os
brinquedos. Corríamos por aqueles campos, rebolávamo-nos na relva, riamo-nos
muito. Não sei como é que os pardais escolhem companheira. Mas deve ser por qualquer
coisa muito parecida com aquilo que me atraía para a Lina, a Descalça, antonomásia
herdada da mãe, mas que na filha assentava a primor, uma vez que, da minha
lembrança, nunca lhe conheci qualquer espécie de calçado. E o que ainda hoje me
causa espanto é nunca ter visto nos pés da minha companheira de infância
qualquer dedo esborrachado ou greta interdigital. À força de andar sempre
descalça, criara na planta dos pés uma verdadeira sola, que lhe permitia correr
por cima das pedras, tojos, silvas, ou qualquer outro obstáculo, sem se magoar.
O
livro citado afirma que o pé da mulher descalço se esparrama, alarga, masculiniza,
se torna nodoso, feio. Não é verdade. Pelo menos a meus olhos, o pé da Lina
continuava bonito, harmonioso, elegante, feminino a mais não poder ser.
Com
ele a minha amiga se sentiu feliz até aos catorze anos. Por essa altura sobreveio-lhe
uma doença muito comum nas mulheres: a inveja. Via as filhas dos lavradores de
sapatos na missa e nas festas e meteu-se-lhe na cabeça que também tinha direito
a uns. Pediu-os à mãe:
—
Oh, filha! E dinheiro?
—
Deixe-me ir às segadas.
—
Vou falar com o Marcelino.
O
Marcelino era tio materno da Lina e capataz de seitoiras. Comprometeu-se a
levar a sobrinha à Terra Quente. Partiram em fins de Maio e regressaram em
meados de Julho. Graças à protecção do tio, a jovem Descalça foi e veio
sem ter perdido a inocência e a alegria.
Juntara
à volta de 500$00 de jeiras. Comprou sapatos, meias de vidro, vestido,
arrecadas e deu o resto à mãe. Entretanto chegou a Senhora da Livração e Lina
resolveu ir à festa e estrear os sapatos. Fui com ela. À pata
e descalços, ela com os sapatos numa saca, à cabeça, e eu com os meus enfiados
num pau, ao ombro. Entre Peireses e as Boticas medeiam uns bons quinze quilómetros
de caminhos poeirentos. Chegámos num estado lastimável.
—
Calçamo-nos Lina? — perguntei eu à entrada da vila.
—
Mas eu queria lavar os pés para não sujar os sapatos. Não sabes onde haja por
aí um tanque ou um rego?
Levei-a
lá para uma represa onde, durante a festa, costumam colocar um São Cristóvão
gigante com uma tranca nas unhas e o Menino Jesus ao ombro.
Desencardimos
os pés, enfiámos os sapatos, corremos para o arraial. De repente a Lina levou
as mãos ao peito e disse:
—
Ai Jesus!
—
Que foi?
—
Falta-me o ar...
—
Não me digas que respiras pelos pés?!
— Ai Jesus! — voltou ela, sentando-se no passeio.
Estava
coberta de suores frios, lívida, mesmo aflita. Afligi-me também:
—
Queres que te vá buscar um copo de água?
—
Liberta-me dos sapatos se não abafo.
Retirei-lhe
rapidamente os sapatos e as meias. Ela respirou fundo:
—
Ai que alívio! Deus te pague.
Ficou
um momento a olhar para mim com aqueles seus olhinhos garços, tão luminosos,
expressivos e promissores como as mais belas manhãs de Abril. Depois começou a
chorar.
—
De que choras?
—
Lá se foi a festa...
—
Porquê?
—
Já viste a figura? Tu de sapatos e eu descalça?
—
Isso tem bom remédio.
Descalcei-me
também e estendi-lhe a mão:
—
Anda.
E
começámos de novo a correr de mãos dadas, alegres, felizes e inocentes como
dois pardais acabados de sair do ninho.
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 118 e ss.)
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