quarta-feira, 25 de junho de 2014

NINGUÉM AS VESTE QUE AS NÃO BORRE...


Após um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.
Brumário por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que, outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.
O medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos, na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.
A mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.
Um dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra cão!»
Por vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em diagonal, direito à serra.
Eu, em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim, nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.
— O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.
E o Avô, que era muito divertido, respondeu:
— Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?
— Não.
— Repara.
E o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga do braço direito, exemplificou:
— Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de dentro para fora.
No dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!» vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:
— Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?
Doutra feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês. Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o Barrolo:
— Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.
E mete a correr, pau no ar e goelas abertas:
— Chiba aí ei... ei... i.
Ainda mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no ar, olhos esbugalhados, boca aberta.
— Que foi, Barrolo? Viste lobo?
Ele abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.
— Levou-te algum richelo?
Numa voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:
— Uma ovelha!
— Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?
— Que é que tu lhe fazias?
Eu exemplifiquei a manobra do Avô:
— Virava-o com o de dentro para fora.
— Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.
Olhei para ele com mais atenção:
— Não me digas que borraste as calças?
— Ó Marinheiro? Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...
— Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que as não borre... É dos livros.»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 128 e s.)

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