quarta-feira, 7 de maio de 2014

SE TE NÃO PODES DESFAZER DOS INIMIGOS, JUNTA-TE A ELES


Se os dias, como os substantivos, se classificassem pelo género, incluiria o de hoje entre os neutros. De manhã choveu e de tarde fez sol. Embora não seja homem de grandes afazeres, só pela noitinha pude sair de casa. O Outono está quase no fim, as árvores quase nuas e os caminhos atapetados de folhas. Gosto de as sentir debaixo dos pés. Criam-me a ilusão de passear por sobre as alfombras das salas, corredores e jardins privativos do sultanesco palácio que um dia o génio da lâmpada de Aladino me prometeu e até hoje ainda não cumpriu.
A quinhentos metros da aldeia, caí na solidão absoluta. Apenas um leve pipilar de aves que dir-se-ia vir ou fazer parte da terra. O poente enrubescia e a lua navegava alta por entre nuvens cor de chocolate com pinceladas laranja. Um fim de tarde de pastores enamorados, cavaleiros andantes, menestréis a dedilhar a tiorba e princesas elanguescidas ao balcão.
Vinha já de regresso, a pensar na morte da bezerra ou na minha, já me não lembro, surge-me pelas costas o Anacleto.
— Que andas por aqui a fazer a esta hora? — perguntou.
— Nada que me envergonhe. E tu?
— Venho ali do lameiro. E sabes o que fui lá fazer?
— Tornar a água.
— Mandinga aos porcos-bravos.
— Algum laço?
— Roupa velha.
— Restos de comida? É isso?
— Não.
— Homem explica-te por uma vez.
— Os tipos levam-me o lameiro virado. Vêm ao vezo dos niscros e da bolota e viram tudo. Se eu lá esconder umas peças de roupa usada, os gajos cheira-lhes a homem e fogem.
— Ora aí está um truque que eu desconhecia.
— Ficas a saber.
— Por falar em porcos. Já mataste?
— Eu agora já não mato. Os filhos estão todos para a França. A mulher não come carne de porco. Eu também não.
— Não gostas?
— Gostar, gosto. Mas o médico proibiu-ma. E olha que bem saudades tenho das matanças de antigamente. Aquilo é que eram festas! Ainda me lembro da primeira vez que matei. Como sabes, eu era um criado de servir. Não tinha onde cair morto, como se costuma dizer. Mas era apaixonadiço, namorei a minha Rosa e não tive outro remédio se não casar com ela. Fomos viver para uma corte cedida de esmola pela Viúva, boa mulher, Deus a tenha em bom lugar, que bem o mereceu. O espaço não era muito, mas a minha Rosa tanto insistiu que eu improvisei lá um cortelho para ela criar um reco. À força de leitugas e labrestos apanhados por esses lameiros de pasto e terras de centeio, castanhas, bolotas e batatas do rebusco, erva dessas bordas e o suprimento dumas malgas de grão e outras de farelo mendigadas pela minha Rosa por casa das lavradeiras a quem ajudava nas lides de casa, pudemos chegar ao São Martinho em condições de matar o nosso porquinho. Convidámos os meus sogros e quatro amigos para a matança. Fizemos tudo o que havia a fazer da parte da manhã e, ao meio-dia, estávamos à mesa. Julguei que os tipos, barba untada, barriga cheia, se fossem embora. Mas não. Só os meus sogros é que se retiraram. Os outros quatro puseram-se a jogar as cartas. Veio a merenda, veio a ceia, e os tipos não largavam. Acabaram-se as filhós de sangue, o sarrabulho, a coiracha, o fígado, os rins, o gorgomilo, tudo o que era do dia, e os tipos sempre a reclamar: «Então não há mais nada que se coma?» Comecei a desmanchar no porco. Lá para a meia-noite, rosnei ao ouvido da minha Rosa: «Vamo-nos deitar a ver se os alarves ganham vergonha e se vão embora.» E depois, em voz alta: «Bem, rapazes, desculpai lá, mas eu e a Rosa vamo-nos deitar.» «Ide. Ide, que nós cá nos arranjamos» — respondeu o que embaralhava. A minha Rosa, coitada, morta de fadiga, adormeceu logo. Mas eu não havia maneira de pregar olho. De golpe, saltei da cama, fui para junto deles e toca a dar ao dente... Não carai... E com esta me vou. Até logo.


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

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